quinta-feira, 7 de outubro de 2010

Um belo lugar



Olá, Sofia

Ao final da tarde de ontem enviei-te um sms e liguei-te depois, mas não te consegui chegar.

Esta ”nova teoria conspirativa” não é um pedido de desculpas, que só faria sentido se houvesse anteriormente algo que o merecesse, e não dei por isso.

È uma simples história..

Curiosamente ontem foi um dia em que me senti particularmente airoso, apesar do pouco que dormi.
De vez em quando todos o sentimos, é relativo a nós e não tem a ver com padrões universais ou reconhecimento obtido dos outros.

Mesmo com o claro pressentimento de ser um não-dia para acontecer, por indisponibilidade ou por 270 km que se intrometeram, senti-me, além de bem comigo, curioso de ti.

À noite, apesar dos conselhos mesquinhos de um Fedro romano - homónimo de outro mais ficcionado e filosófico - que "conheces apenas quem te conhece" e que "é perigoso crer e não crer", dispus-me a procurar quixotescamente um vento favorável ao meu desejo, mesmo acompanhado pela intuição de não ser ainda o seu momento.
Mas lembrei-me também dessa criação platónica, capaz de falar à "alma" e dar-me a razão que refutava ao mestre do seu autor, e lá fui.
(hoje pareço o Paulinho das feiras, na versão dos congressos, “o que a Sra. disse que eu disse eu não disse e...")

Porque se a água corresse não faria falta o vento!..

Entrei e dei-te razão. É um belo lugar, para o sentar e acalmar. Amar não sei, não amo ainda.
E continuei a sentir-me "airoso", e imaginei que as "burguesas" em redor também o notaram e me perdoavam o olhar sonhador que, esgueirando-se através do vão arqueado e evitando o cabide onde pendurara o casaco e o cachecol, se perdia na transparência e na fantasia da tua entrada..
Lembrei-me ainda de uma frase mais recente, "ignorar os factos não os altera", ao contrário do sal, que os torna gostosos. Digo eu.

Mantive-me ali uma hora serena, talvez necessária, a vigésima segunda de um dia que não chegou a ser bom nem mau, apenas sem brilho, num reconhecimento, homenagem e penitência necessárias. Pelo dia em que lá me esperaste em vão.

Fugazmente distraído e divertido pelo deambular frenético da empregada pitosga, na sua concentração quase infantil e sobretudo na enfatuação com que insolitamente repetiu e tornou inesquecível o meu pedido.

Que afinal era só um moscatel e uma tosta de pão de centeio barrado com requeijão e doce de abóbora.
Um pequeno mimo para apaziguar outro, bem maior, que agora me calhou não ter.

No compasso desse tempo que te dediquei decidi não me oferecer todo, sou assim, permito-me deambular e saltitar entre estados de espírito românticos e marialvas, como se deste Romeu mergulhado em nostalgias emergisse subitamente um Casanova cáustico e manipulador de corações suspirantes, ainda que ausentes.

Pegando num guardanapo, talvez provocando até na alma desassossegada do vizinho Pessoa a expressão divertida que não lhe é facilmente atribuível, ou mesmo um risinho de escárnio, esse bem mais plausível, imaginei-me poeta e rabisquei nele umas quadras de inspiração falhada e métrica ortogonal, em abono daquele lugar recatado. Momento triste, ainda assim capaz de me ter dado uma certa compostura intrigante. Ou apenas patética. Adiante.


Pressentindo que o vento, o sal e a água, cuja ligação à "terra" é anunciada num vão vizinho, ainda têm encontro previsto, levantei-me e saí.
Não perdi nem ganhei, e não me viste, airoso e "assim".

Beijo.


PS - "Já não há pachorra", teria sido o meu último pensamento debaixo de telha, se não o tivesse substituído, já no vão da porta, pelo “ainda há..” com que me lancei na calçada rasante para logo em seguida esbarrar com o teu olhar divertido...