quarta-feira, 26 de janeiro de 2011

Ovelha tresmalhada


Ovelha tresmalhada


Voltámos ao mesmo, nem outra coisa era de esperar.

“Apaguei” o Cavaco no dia em que, e já lá vão muitos passados sem que nunca o tenha desmentido, disse que nunca se enganava e raramente tinha dúvidas.

Para mim entrou directamente para universo dos imbecis porque só esses podem crer em tal alarvidade e a coisa ficou assim desde então.

E pelos vistos ele lidera ainda o mundo que fica para além do meu, onde as certezas, a maioria das quais provisórias, se vão construindo em função da reflexão que as muitas dúvidas motivam...

Bom mas nem vinha falar deste assunto, nem de bolo rei, nem de BPN, nem mesmo de moradias de luxo permutadas e muito menos de dramas gays extra portas com castros e afins, que pelos vistos vendem mais tempo de antena e motivaram mais atenção popular que a confirmação do que já se sabia de antemão.

Mas sempre digo que a mediocridade da concorrência também não abrilhantaria o evento, se de um evento real se tratasse, porque nem isso foi, uma vez que a eleição do presidente de um país virtual é assunto irreal e, neste caso, insignificante, caricato.

Um mau serviço à fantasia de um povo que já teve melhores dias...

E o campeão bem pode gabar-se de ser o presidente de 20% dos que por cá andam, porque isso nos enche de esperança, aos outros 80%... É que afinal, tirando os ditos, ainda somos maioria...

E ponto final neste assunto melindroso.

O que me inspira este desabafo foi ter sabido que pela primeira vez um amigo meu, daqueles que fez parte da minha criação, apareceu na teia da corrupção generalizada que dirige este país já sem decoro, sentido auto-crítico e muito menos cívico.

Pensei que se tratava numa das - poucas - vítimas dos enredos desse poder que vigora nesta terra de faz-de-conta que somos sérios, porque as há no meio de inúmeros outros que sendo culpados escapam ilesos a todas as manigâncias, e fui ter com ele, para o confortar.

Mas afinal percebi que ele se assumia como vítima de ter sido apanhado a fazer o que todos fazem, só porque houvera uma mudança de poder que o deixou à mercê...

Em vez do desmentido convicto que esperava descobri que não passava afinal de mais um deles, e que depois de muito se aproveitar acabara por cair em desgraça...

E ouvir de um dos que cresceu comigo argumentos como “não fiz mais que os outros” desmoralizou-me e confundiu-me.

Porque acreditava que éramos imunes à vulgaridade da corrupção, da ganância e da imoralidade mesquinha, por isso tínhamos dúvidas e incertezas sobre quase tudo menos sobre os princípios e a ética de base que nos regem na vida.

Porque acreditava que quem bebeu do cantil em que saciei a minha ignorância curiosiosa e consolidei um pequeno conjunto de valores e quase certezas não diria nunca frases daquelas.

Porque desse cantil bebemos valores, talvez pouco ortodoxos e moralmente algo desalinhados, mas definitivamente bem orientados e definidos por essa mesma amoralidade que entre outras coisas repudiava determinadamente toda a corrupção.

Era uma fé que julguei extensiva a todos nós, o pecúlio lógico e bonito de uma adolescência que julguei ter sido vigorosamente partilhada com todos os meus companheiros, dando-nos imunidade à baixeza moral e material e ao chico-espertismo.

Muitos terão sido ao longo do percurso sujeitos entretanto a tentações poderosas vindas desse mundo desfocado e obscuro. Por vezes os valores envolvidos seriam até apelativos e capazes de os fazerem vacilar e obrigar a rever a matéria, mas pensei sempre que nenhum se tornaria permeável, porque os critérios de ética e conduta que criámos então eram sólidos e sustentados em reflexões e vivências reais que nos obrigaram a construir um coito de valores não alienáveis.

Não como os imbecis, note-se, eram só uma base fundamental à criação de uma filosofia de vida, eram só uns pouquinhos e todos eles nascidos após muitas dúvidas intelectuais conflituosa e exaustivamente resolvidas a e pelo bem.

Que se resumia a um bem estar psicológico indispensável, para se aceder à leveza e tranquilidade de um viver sem opacidades comportamentais, morais e más consciências.

Pelos vistos esqueci-me que nem mesmo nesse infra-mundo em que cresci e me fiz homem deixaria de haver variações de carácter e índole que podiam afastar-se tanto desses valores que conjuntamente elegemos que poderiam levar até um ou outro de nós ao lado oposto.

Aquele que sempre analisámos e desmontámos em exercício racional e forma de fortalecimento dos tais valores que criámos em contestação aos que nos eram passados como mera herança não vivida nem reflectida, e por isso se deviam ter tornado em nós todos fortes e inabaláveis convicções pessoais.

Senti-me por isso envergonhado, enxovalhado e pior, incapaz de ali continuar, próximo de quem se revelou a ovelha tresmalhada – espero que única – do rebanho de que me honro de fazer parte .

Perdemos um de nós em vida e descobri que isso é muito mais triste ainda que os velórios dos que já partiram precocemente.

quarta-feira, 12 de janeiro de 2011

Saída ou a falta dela




Não é entrada mas o registo de uma saída ou a falta dela que hoje me tocou e deixou desalentado.

A Cristina foi minha fisioterapeuta durante os últimos seis anos, já muito depois de ter percebido que este meu ombro direito só conseguia funcionar bem se lhe proporcionasse um cuidado semanal de mãos de quem sabe negar-lhe a apetência em criar-me prisões nos movimentos.
Depois no Nuno Pombeiro e da Conceição Delgado acabei por me fixar na Cristina, porque na técnica das suas as mãos encontrei o equilíbrio entre a menor dor possível para mim e a maior eficácia em o ir mantendo apto e ágil, além de ser mais perto de minha casa, claro.

Religiosamente às terças feiras primeiro, depois às quintas e ultimamente às quartas, porque ela tinha agora um curso à quinta, era nas mãos dela que começava o meu dia.

E ao longo de seis anos falámos muito, não só do meu corpo - que ela dizia que eu conhecia e sentia particular e invulgarmente bem – mas um pouco de tudo e de nada, porque pelo meio os nossos filhos foram crescendo, porque me morreu a Filipa e ela se separou agitadamente do marido.

E embora não lhe possa chamar amizade declarada desse convívio nasceu um sereno afecto entre nós.

Quando há uns anos precisou de um paciente para ser entrevistado para um programa da Sic, ou do canal dois, já não me lembro bem, pediu-me, porque era o tal que tinha boa consciência do corpo, e assim lá fui excepcionalmente a um sábado para a piscina ser filmado nos braços dela e depois para uma entrevista de roupão.

Desse episódio resultou ter-me auto nomeado bastonário da ordem dos entrevadinhos residentes, até porque serei provavelmente já o mais antigo dos seus limitados motores, embora seja também dos menos velhos.

Quando me deixava com o calor mais tempo sabia logo que esse seria um dia de silêncios, e quando ela voltava para começar a tortura fechava os olhos para não ver os dela perdidos em pensamentos enquanto as suas mãos me moíam as inevitáveis calosidades em que este maldito ombro é inesgotável.

Nos últimos meses senti-a a necessitar cada vez mais desses silêncios, vi-lhe os olhos cada vez mais alheados e só não protestei porque o afecto destes seis anos tornou esses inícios de manhãs em algo mais que simples sessões de fisioterapia.

Disse-lhe um dia destes que ela era a mulher que mais me tinha mimado – e maltratado também - o corpo na vida e esse é um exemplo da troca de palavras gentis e só ligeiramente informais em que se esgotava a nossa ténue cumplicidade.

Ontem foi a primeira vez que ao regressar a casa decidi passar pela H2O. Sem formalizar bem uma razão senti que me apetecia confirmar com ela a sessão de hoje, embora a minha hora fosse cativa há já muito tempo da agenda dela. Apenas mudou de dia da semana ao longo destes seis anos, por conveniência de um de nós. Parei o carro, porque vi a H2O iluminada mas quando me aproximei da porta um pouco inexplicavelmente desisti, dei meia volta e voltei ao carro.

Mas hoje e como sempre lá fui dar. Entrei e percebi logo que algo se passava porque vi o outro fisioterapeuta, o Nuno, e a Maria, que é a nova recepcionista, muito desorientados, agitando-se de um lado para o outro na recepção mas sem qualquer objectivo perceptível.


A Cristina suicidou-se ontem em casa e pela sua agenda, onde confirmei que pela primeira vez não estava marcado, percebi ter sido um acto premeditado.

Penso nos três filhos dela e no ex-marido, desejando muito que os primeiros consigam assimilar a perda sem culpabilizarem o segundo, porque infelizmente é probabilidade forte de herança da sua ausência naquela família.

Inversamente desejo-lhes muita união, compreensão, solidariedade, paz, tolerância e bom senso.

É para eles este meu voto sentido e sincero.
De ti, Cristina, fica-me uma tristeza já com forma de saudade.

sábado, 8 de janeiro de 2011

Desabafo





A retemperar o fôlego e já adoçado às almofadas deixo a mão tactear na mesa-de-cabeceira o maço até dele tirar o cigarro que acendo langorosamente.

E enquanto sigo a linha ondulante de fumo da primeira baforada pergunto-me que será feito dos rituais do amor e da paixão?

Aquelas sensações que dominavam e avassalavam a existência, transportando-a da mais dolorosa infelicidade à mais eufórica alegria e levitação num estado próximo da felicidade total sem qualquer outra explicação que a de ver reconhecida ou rejeitada uma exclusiva dedicação emocional a alguém que invadira e tomara todos os recantos da nossa atenção e paixão?

Quando um simples olhar do ente amado parava a respiração e nos fazia donos do universo, ou nos atirava inversamente para as profundezas da incompreensão e da mais mortificante e sofrida solidão?

Seriam meras características das inseguranças da adolescência, quando as substituímos pelas certezas incompletas que nos tornam cegos, surdos e mudos à oposição?

Não, acho que não.

Porque estar próximo, tocar a mão ou cheirar o perfume do ente amado era um momento inigualável de êxtase existencial.

Quando a nossa atenção registava e se enternecia em cada pormenor e detalhe notado nesse ente e quando o nosso corpo se disponibilizava e estremecia de prazer só por se ver aceite como parceiro dessa paixão total, acalmado não pela concretização do seu desejo carnal e lascívia erótica - que se escapuliam de muitas formas, tantas vezes imperfeitas, quase involuntárias e até solitárias - mas pela sensação de plenitude que a proximidade física e o toque terno do hálito amado lhe proporcionavam.

Foi-se tudo na entrada da idade adulta, não a do bilhete de identidade mas a desta era de informação cruzada e habituação às vivências e exigências rotineiras e fugazes, mesmo as sexuais, em que o percurso cada vez mais apressado e automatizado de todos esses estádios vai substituindo o desenrolar dengoso e simultaneamente intenso, eufórico ou doloroso, dos rituais do amor e da dedicação que um sentimento por outro ser proporcionava.
Acreditava-se simplesmente que havia uns poucos a quem a natureza doara aliatoriamente o benefício do sexapeal e da competência, enquanto os outros acoitavam e protegiam a sua suspeita de mediocridade atrás do conformismo e do matrimónio, mantido como instituição definitiva e irreversível de arrumação social e familiar.
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Não havia um assunto sério chamado sexo nem muito menos diálogo e esclarecimentos de curiosidades inter sexistas mas tão só desafinados e desgarrados monólogos individuais das incertezas isoladas, com cada um a fazer figas para não constar dessa maioria cinzenta que nada sabia de si mesma nem do infinito mundo de sensações e capacidades eróticas afinal acessíveis a todos os que a elas se dediquem.

Mesmo as mulheres, agora reconhecidamente detentoras de uma autosuficiência que destroçou os mitos do machismo, obrigando o masculino a actualizar-se e a aceitar que o seu papel só se sustenta numa competência facilmente avaliável, pouco ou nada sabiam desse universo que detinham.

Reconheço a esta distância que o conteúdo erótico e sexual do conjunto de sensações que constituía esse sentir apaixonado dificilmente se pode comparar à objectividade actual, mecanizada e perfeccionista do sexo orientado pelo controlo, medido pela obtenção de resultados físicos e pelas metas balizadas na competência dos desempenhos que os substituíram.
Mas com eles esvaiu-se essa outra magia das sensações totais, que não cabiam numa contextualização só física ou só mental, esses únicos e verdadeiros momentos de apoteose ou agonia sentimental e passional.

Tenho saudades desses rituais e, para ser franco, sinto-me também meio saturado do aperfeiçoamento técnico e da excelência dos resultados que se lhe seguiram.

Aliás como deste cigarro...