quinta-feira, 19 de maio de 2011

Foi ali




Senti o espírito tão entorpecido como encantado e evitei olhar-te de frente, temeroso de assim denunciar o quanto estava estupefacto, estarrecido e simultaneamente embevecido.
Nunca acreditara que existias mas reconheço que não tentara sequer criar-te no imaginário, quanto mais procurar-te no mundo real.
E no entanto ali estavas, a olhar-me também de soslaio, com um sorriso que ainda não me atrevia a descodificar, de ombro encostado ao meu como se nos conhecêssemos de sempre, enquanto apoiava no balcão a tontura provocada pelo teu aparecimento.
Apesar de ter voado milhares de milhas para corresponder às trinta que tu deixaras para trás e depois do compasso de uma semana de hesitação, preenchida em disparates somados só para disfarçar e acalmar essa ânsia de correr para ti.
Porque se sobrepunham sobreavisos contraditórios, encorajamentos sobre ti, que podias ser o que não podia existir, e um coro de troça a desmenti-los.
Esses disparates, soube-o logo, mais não eram que cobardias a desviarem-me de um mergulho no ridículo  dessa crença súbita de poder materializar o impossível, cedendo ao impulso que pressentia também não ter retorno nem recuperação.
Se um dia me voltares a olhar saberás que não, que abriste, materializaste e encerraste uma fantasia impossível apenas por existires e te teres mostrado.
Não sabia nem sei ainda hoje definir porque ao fim de tantos anos senti que tinha chegado ao meu destino mas contudo essa era a única certeza que se me impunha naquele estado de total prostração racional e perplexidade emocional.
Porque o prenunciáramos até, a partir do momento em que a resposta à tua provocação ficou presa na percepção confusa que iria despoletar o caos absoluto em tudo o que era, conhecia e desejava, lançando-me num abismo desconhecido e insuspeito.
E que depois, contrariando todos esses alarmes que bradavam ao meu bom senso, se escapuliu repentina e descaradamente, incendiando duas vidas que dormiam na convicção de estarem onde queriam.

Pouco importa agora remoer inseguranças e apontar maldosas coincidências ou obrigar-me a enterrar num esquecimento forçado tudo o que a partir daí resvalou para a mediocridade e cobriu esse clarão de utopia que me atingiu e cegou, porque agora sei que foi ali que o céu se abriu e me sorriu.


segunda-feira, 16 de maio de 2011

INCPP



Ou um espírito gaiteiro que não resiste...

INCPP - Inovação e Criação de Novos Produtos Portugueses

Procuram-se meninas patrióticas.

Se é Portuguesa, jovem, patriótica e disposta a servir o seu país tem aqui a oportunidade que procura.

Exige-se:
- Discrição e sigilo absolutos.
- Boa aparência física e sexapeal.
- disponibilidade total e domínio das técnicas de indução de acessibilidades a figurões da economia e política internacional.
- Estofo para servir, comer e calar, em nome da redução da Dívida Portuguesa.

Oferece-se:
- Farda apelativa, tipo camareira, recepcionista, tradutora, guia turística, massagista, fisioterapeuta, médica, enfermeira, bombeira, polícia, mecânica, caixa de supermercado, empregada de mesa, balcão, franchising, shopping, etc..
- aparições públicas na companhia de J. Sócrates, P. Coelho e P.Portas (reconhecido o desinteresse deste pelo sector oferece-se em alternativa integração na entourage do S. Lopes)*
- Inclusão bem remunerada, vitalícia, livre de cobrança fiscal e presença em Comissão Estatal sem função no próximo elenco governativo, já devidamente negociada e aceite pela troika.
- Smart fortwo ( Ald renovável de 4 em 4 anos, em cores alternadas laranja e rosa).
- Inclusão central no poster gigante do Natal de 2011 da revista Playboy Portuguesa

* Havendo orientação sexual alternativa garante-se a plena e discreta satisfação da mesma.

Respostas:
Por sms com número identificado para o telemóvel 941230069
Receberá resposta pela mesma via, a marcar a data, hora e local onde se apresentar para avaliação prévia e selecção do grupo de finalistas a sujeitar posteriormente à decisão final do FMI.

Diogo Metro e Tugasalino
Presidente do Conselho de Administração do ICNPP

terça-feira, 10 de maio de 2011

Entre Paraísos





Entre paraísos

Refeita a mochila metera-me de novo ao caminho, ansioso por deixar na cidade a ilusão alimentada que a passagem nos dias anteriores pelo paraíso com a Isa poderia ter continuidade ali.
Essa convicção fora criada a partir do momento em que ela se juntara inesperadamente à fogueira com que tornava aquela noite húmida mais acolhedora, só povoada pelo rugir bravio do mar, escancarada ao infinito de um manto azul escuro estrelado e também à poderosa afirmação de autonomia que me marcou o final da adolescência.
Viera em magote juvenil, próprio das férias grandes, mas rapidamente me cansara do seu corrupio constante, entre as catembes no bar do parque de campismo, onde alternativa ou acumulativamente alguns seduziam estonteantes bifas da Cidade do Cabo para uma mal speakada marmelada continuada na discoteca do hotel.
E refugiara-me ali, acendendo aquele lume discreto e afastado do balbucio habitual, talvez porque fora dos primeiros a vir, nos anos anteriores, e já tinha percorrido aqueles mesmos desígnios mundanos.
O aparecimento da Isa fora nesse quadro de isolamento procurado um acontecimento totalmente diferente e logo destrinçado da habitual prioridade flirtista.
Primeiro porque era conhecida e não uma anónima e ocasional estrangeira, estas tão prontas como nós à aventura sazonal e descartável, de avanço definitivamente imprevisível, porque havia as que a seguiam até ao fim e outras que esporadicamente retrocediam para o abrigo desaconselhável das roulotes dos seus enormes e toldados papas.
E também porque tinha dela a ideia de marrona do liceu, muito metida com as suas matemáticas, embora reconhecesse desperdício nessa exclusividade pois já lhe detectara anteriormente a figura atraente e o que então confirmei, que era culta, versátil, espirituosa, e quando queria conversadora e companhia cativante.
E por isso naquela noite e nas duas que se seguiram construímos de forma entusiasmada e aparentemente mútua uma interacção empolgante, com um ou outro beijo de permeio, mas sem grande fixação nessa esfera, até por sermos ali claramente os que a tinham repudiado.
Quando ela se despediu, pois regressava com os pais para a cidade, pareceu-me inteligente fazer o mesmo, para nesse regresso à normalidade vivencial perceber se a empatia nascida fora mero episódio de companhia casual ou se resistiria ás diferenças dos mundos em que por lá nos movíamos.
Porque definitivamente eu não circulava entre os caixas-de-óculos que habitualmente a rodeavam nem ela parecia compatível e interessada nas tropelias mundanas em que usualmente me integrava.
E quando depois de um regresso pitoresco e desesperantemente lento, percorrido no maxibombo e ferryboat obrigatórios, a procurei no club de mini golfe, foi a decepção que encontrei. Nem ela parecia disponível para abandonar o seu grupo de totós desjeitados e presuncosamente intelectuais nem consegui resistir ao segundo pleno de buracos, o que para além do mais me tornou ali também odioso.

De regresso à Ponta do Ouro, praia-paraíso selvagem na extremidade mais Sul de Moçambique - a que o meu pai acrescentara uma das primeiras casas de férias e que durante aquelas disponibilizei aos companheiros apesar de só lá ir tirar o sal - apoderei-me durante o tórrido dia da sombra formada por um curioso triângulo de três pequenas arvores que tinham nascido avançadas no areal da praia, implantado um pouco a Norte do hotel.
Ali me refastelava então indolentemente durante o pico do calor, que era praticamente toda a fase diurna, privatizando aquela formação vegetal e beneficiando da sua insólita frescura, embora de vez em vez atravessasse o areal e desafiasse a furiosa rebentação, passando depois meia hora protegido dela e na crista do ondular forte e vivo e de um Índico ocasionalmente visitado por tubarões.

Tinha passado pelas brasas um tempo indeterminado e estava ainda a reagrupar preguiças para ir comer qualquer coisa ao hotel, afastado dali pouco mais de cem metros quando ao meu lado um sussurro feminino me trouxe palavras inglesas.
Olhei, ainda meio estremunhado e vi aquela que era, desde o início dessa temporada balnear, o motivo de todas as conversas e cobiças babadas do grupinho que acompanhara.
Era a mulher mais deslumbrante que estes olhos que a terra há-de comer tinham visto até então.
E sabia até, pela bisbilhotice fervilhante dos dois lugares onde obrigatoriamente me podia alimentar, que era a figura principal de um filme estrangeiro que estava a ser parcialmente rodado ali.
Já a vira na primeira noite, em que dera uma saltada à discoteca, quando entrara acompanhada pelo séquito das filmagens e muito em particular por um galã que fizera em contraponto com ela as delícias do mundo feminino presente.
Embora já tivesse percebido então que as mulheres usam um código nem sempre coincidente com o meu sobre a beleza masculina não me fora difícil detectar no espécime todos os atributos necessários a uma preferência generalizada no sector, já que se tratava de um homem muito alto e elegante cuja cuidada e basta cabeleira loira, tão clara quanto o aguado dos olhos azuis, enquadrava feições perfeitas e harmoniosas.
A mulher que tal como ele andaria pelo meio da casa dos vinte era a correspondência perfeita para prender a atenção masculina tradicional, embora de tipologia e morfologia físicas totalmente contrastantes.
Tinha um corpo escultural, proporcionado e mediano que revelava a sua origem latina, culminado na farta e brilhante cabeleira que valorizava um desenho facial perfeito e exótico, acrescentado pelo contraste e vivacidade de expressões que tornavam difícil afastar os olhos dela, pois conseguia transmitir alternadamente um completo alheamento à envolvente e uma escaldante atenção focada.
Para além disso distinguiam-se ambos por se movimentarem de forma coordenada e langorosa, como se fossem guiados por um ritmo exclusivo e inacessível aos demais, abrindo nesse seu deambular autista pela pista uma clareira espontânea entre a multidão, rendida à contemplação daquele centro incontornável de todas as atenções.
Deles guardei nessa visão a ideia de um par perfeito e romântico, antes de me retirar para o viver eremita que elegera como forma de atravessar essas férias.
Era pois ela, a mulher-deusa do cinema longínquo, quem se abrigara também no meu refúgio do calor diurno durante a minha sonolência e se me dirigia, confortável e paralelamente deitada a menos de um metro do meu corpo.

Passámos lá a tarde, numa tagarelice e mímicas divertidas e animadas, alternando o inglês, quando este me era insuficiente, com um italiano absorvido do neo-realismo cinéfilo e um gesticular de larga liberdade e amplitude.
Diálogo que levámos nas passeatas à beira-mar para colhermos dela salpicos de frescura e que teve o imediato condão de apagar da minha mente a Isa e o desencanto trazido.
Que simultânea e inevitavelmente inflamou também a curiosidade e a palermice dos meus pares de férias, o que não menos obviamente me reforçou o orgulho afirmativo, pois já notara comentários trocistas dirigidos ao alheamento social que adoptara.
Nessa noite veio mesmo buscar-me ao triângulo para me juntar ao seu grupo na discoteca, apresentando-me a todos e dançando exclusivamente comigo.
O seu belo companheiro foi também de uma delicadeza e simpatias insuperáveis para comigo o que, para além de me confortar, esboçava interrogações que contudo não me atrevi a intrepertar e explorar de imediato.

Já de madrugada despedi-me dela com grande emoção, pois sentia que o simples facto de me ter dedicado a sua preferência era já em si mesmo prémio para a nascente convicção que iria no futuro reforçar a minha independência e definitivamente orientar-me por decisões pessoais e não pelo pensar e agir socialmente alinhado e abrangente.
Já com todo o grupo instalado no autocarro ela manteve-se junto a mim numa despedida marcada pela intensidade dos olhares e foi então que me disse que iriam permanecer dois dias na capital para rodarem curtas passagens do filme.
E que teria pena de não ter lá a minha companhia.

Esta declaração inesperada deixou-me sem pinga de sangue, pois percebi que até então me obrigara a interpretar a atenção dela como mero capricho de fastio, sem acesso a outro desenvolvimento, o que agora subitamente se revelava um erro de leitura imperdoável.
Mas num último arremesso de coragem perguntei-lhe directamente se ela não namorava o seu atraente colega.
Ela olhou-me, virou-se para as janelas do autocarro e apontando para uma delas, onde vi um dos elementos do grupo, respondeu-me:
- Não, o namorado é ele…
Fiquei por momentos confuso e perdido no raciocínio mas observando melhor e vi também pela primeira vez a forma como o ocupante do vidro fixava o galã sentado ao seu lado, e acendeu-se finalmente a luz que até aí faltara ao meu espírito, compreendendo que não se referia a si mesma...
Ela também o notou e sem falar transmitiu-mo por uma expressão simultaneamente divertida e trocista.
Recuperando a agilidade mental perguntei, naquele dialecto que inventáramos e já com ela a subir os degraus, se à hora de partirem, na manhã seguinte, não haveria lugar para mais um...
- ...nem que seja lá atrás, em pé na coxia ou mesmo na bagageira, junto às malas?...
E foi com nova expressão, esta enigmaticamente distante, lançada já sobre o ombro, que me esclareceu que o tinha já reservado, ao seu lado.


quarta-feira, 4 de maio de 2011

Uma improvável coincidência


- para maiores de (mental)idade-


Era a nossa segunda noite e aos repetidos estados eufóricos seguiam-se amaldiçoados mas indispensáveis intervalos.
Porque não fomos feitos da mesma massa, digam o que disserem os filósofos e os cientistas.
E aquela mulher soltava-me ininterruptamente a tampa, não deixava esmorecer as labaredas que incendiara no meu desejo e por isso me incomodavam as pausas incontornáveis à minha natureza de homem.
Não era bela nem sequer se denunciara anteriormente o apelo que transmitira à minha libido assim que mergulhara no perfume do seu encanto.
Há quem lhe chame química, a mim parecia-me loucura pura e intraduzível por um qualquer conceito já acontecido.
E contudo fora muito sereno e mesmo indolente o seu despertar, talvez pela minha percepção não ter desconfiado do que se prometia.
Ela tinha uma particularidade física que obviamente teria sido sempre o chamariz de atenções anteriormente colhidas e que por tal considerei dever poupar e até evitar: umas mamas lindas e firmes, cheias e pontiagudas, até proporcionalmente exageradas face à elegância do corpo.
E por isso também a minha abordagem as contornara, sendo particularmente discreto, e também suave e meigo no seu breve acariciar.
Mas curiosamente essa predisposição e contenção em nada afectou o deslumbramento que despertou em mim aquele mergulho quase ébrio no seu corpo quente e na sua forma de dar e receber sensível e sensualmente intensa.
E assim percorrêramos já uma mão cheia de empolgamentos e êxtases, cada um deles multiplicados muito para além do imaginado.
E ela não tinha forma de os acrescentar ou simular, pois manifestavam-se de forma inequívoca.
Porque há mulheres que sofrem dessa (in)conveniência masculina.
Por isso naquela pausa de guerreiros nunca saciados me surpreendeu ouvi-la perguntar porque sendo tão minucioso e paciente – quase tortuoso – na estimulação de tantos dos seus lugares de prazer desleixara, de forma tão evidente, as mamas.
Disse-lhe o porquê, ela riu-se e abraçando-me retorquiu:
- Meu querido... é bem verdade parte do que pensaste, mas escapou-te a possibilidade de haver uma improvável coincidência: a de eu adorar o que elas provocam...


PS - Dedicado ao recordar de uma mensagem sambista que, tal como Chagall, coloriu um dia cinzento... mas nem tanto moralista. :)

Nem mais nem outros


O atelier do artista... de José Malhoa

Não cai bem reflectir publicamente sobre a íntimidade...

Nem privadas a criticar essa minha ousadia, embora ficasse sempre claro que as lucubrações aqui feitas são layers opinosos sobrepostos a bases fictícias e congeminadas entre fantasia e experiências de vida, misturadas de acordo com as minhas preferências e até (porque não?) carências exibicionistas e propangandistas pessoais - :))) -, conforme refere ainda o sub título deste blogue.

Porque gosto de imaginar situações, de as atravessar, trespassar e desenvolver, talvez inabilmente, através dos pequenos contos que construo e dos enquadramentos que defino para as suas personagens.
E para isso dá-me jeito também vestir o eu das figuras criadas, tendo-o já assumido no feminino e até no plural, tentando desvendá-las ou apenas espreitá-las, pelo verso e pelo reverso.
Que a considerem uma vocação desprezível para um espaço que mantenho público ou mesmo ocupação árida e até ofensiva dos tempinhos que me sobram entendo, mas deixem-me brincar com ela que há formas muito mais nocivas e mesquinhas de os desmerecer.
Houve em tempos quem me enviasse vírus e tornasse quase importante através de campanhas e alertas, facultando sobre mim pormenores que muito me surpreendiam e deixavam estupefacto quando mos contavam.
Por assim o manter aberto torno também óbvia a receptividade à opinião crítica alheia, que é coisa diferente e atraente.

Mas voltando à vaca fria – adoro esta tradução literal do inglês – abordar através de uma perspectiva intimista situações entre o real e o ficcionado e percorrê-las também pelas suas vertentes psicológicas parece-me um exercício que (me) alarga os horizontes da compreensão da complexidade humana e vivencial.
Porque julgar é tanto mais fácil quanto mais estreita e unilateral for a nossa percepção do mundo, das suas realidades e gentes, do existir e do pensar diferentes do nosso.
Porque se os há em tantas formas, algumas chocantes mesmo para os mais tolerantes, é porque se sustentam em imensas e complexas concepções relativas ao mundo peculiar de cada um.
E que terão a sua génese no que se designa por índole ou carácter pessoais, acrescentados das particularidades colhidas em crescimentos mais ou menos atípicos.
Tenha ou não o sujeito disso consciência a compreensão de cada atitude íntima e pessoal, social, política, etc. é fortemente influenciada pela interacção destas duas involuntariedades, a que devemos apor ainda a influência decisiva da consciência e da determinação pessoais de cada um para alterar - ou não - o rumo previsto pela dependência desses factores que nos formaram e foram impostos, e que constituem um desafio em que me dá gozo mergulhar introspectiva e conjugadamente.
Descodificar os cenários desenhados em intimidades particularizadas é pois para mim um prazer e fá-lo-ei cada vez com maior curiosidade e mesmo despudor, porque tenho recolhido desse aventurar por eles a convicção que mesmo centrando-o no imaginário – inevitavelmente influenciado pelo que me tocou e observei em redor – me enriquece e ajuda a relativizar o choque que é sempre viver entre diferentes.
Mesmo ciente de não ser verdadeiramente possível aceder com exactidão ao núcleo central da esfera íntima de cada uma dessas personagens continuará a ser esse um meu atrevimento, com crescente probabilidade de chocar o que lhe junte preconceitos e intentos alheios.
Porque os meus são só estes, nem mais nem outros.

segunda-feira, 2 de maio de 2011

Não basta dizê-lo...



Não basta dizê-lo...

Ser civilizado não é uma declaração mas um estádio da evolução humana centrado na coerência de atitudes e comportamentos.
Que têm mais valor quando posta à prova porque sendo sempre fácil afirmá-la é então mais difícil tê-la.

Comemorar e congratular-se com a morte e o assassinato, ainda que de um monstro, parece-me um acto reprovável, pouco civilizado e mais, perigosamente insensato e eventualmente provocador.
Sentir alívio parece-me justo e humano, mas regozijo não, porque o que nos diferencia da barbárie é exactamente a conduta e o civismo com que lidamos com as formas de a reprimir, combater e penalizar.

Calhou por um acaso a execução de Bin Laden no exacto dia em que há 2 anos perdi uma filha.
Sei pois bem como parece doer ainda mais uma morte para a qual não se encontra explicação ou compreensão, que é o que deverão sentir todos os que perderam entes chegados nos atentados instigados e inspirados por esse facínora da alta burguesia árabe-americana.
Porque se meteu pelo meio um longo fim de semana que atiraria para muitos dias depois uma sequência de autópsias, primeiro a legal e só depois a médica, para procurar explicar a morte de uma menina de 22 anos que morreu a dormir e sem que a polícia técnica e o seu exame local tenham conseguido apurar qualquer causa.
E para além de ninguém poder estar preparado para a súbita perda senti também que prolongar o choque já de si sem atenuantes com uma paragem no tempo assim era insuportável, porque a transformaria numa tortura ainda maior para todos.
Julgo que se tivesse havido a explicação que sempre faltou me seria agora mais fácil suportá-la, não no dia de hoje mas em todos os que decorreram já desde essa fatalidade.

Tentando transpor o intransponível, porque a dor e a perda não se transpõem, será que a partir de agora esses milhares de lesados pelos crimes do Bin Laden se sentem mais confortados e ressarcidos das suas perdas?
Sabê-lo executado e extinto transmite-lhes de alguma forma a sensação que foi feita justiça?
Ou será que ouvir o Barak Obama, o David Cameron, o José Sócrates e até alguns dos ditadores árabes (ansiosos por solidariedades e bodes expiatórios salvadores) congratularem-se com a sua concretização os fará sentir melhor?
Penso que não porque caso contrário isso significaria que consideravam a morte do infame moeda de troca de valor permutável pela perda dessas milhares de mortes que propositadamente provocou.

Sempre achei que o que distinguiu o tipo de crime que o tornou tragicamente famoso foi a sua mania das grandezas, desumana, teatral e monstruosa, numa demonstração de vaidade pessoal e infantilidade mental verdadeiramente doentias e incomensuráveis.
Porque qualquer menino de 3 ou 4 anos atira um avião de papel contra uma torre de lego, faz pecheee e extermina ainda mais inimigos imaginários.
O hediondo é que houve alguém que como ele chegou a adulto assim, para mais muito rico, ainda convencido que esse pecheee era admissível para substituir o seu ócio, os seus recalques e frustrações, para validar os seus anseios de notoriedade e suficientemente exequível para fazer sobressair a sua capacidade de o realizar com seres humanos reais!...
Porque para ele nunca houve vítimas mas apenas meios, coisas que a sua megalomania usou em busca de uma imortalidade obtida pela congeminação de acções catastróficas que se tornassem conotadas com o seu nome, tornando-o inesquecível aos outros pela dimensão gigantesca, cruel e de total desprezo pela condição humana dos actos que instigou e fez concretizar, e para isso tanto se lhe deu que as vítimas fossem do seu lado ou do outro.
Por isso o considerei sempre e só um desprezível verme que por aqui passou convencido que era mais que todos os seus semelhantes.
Foi único? Não, foi apenas mais monstruoso, porque não distribuiu antecipadamente fardas apropriadas que configurassem e legalizassem um conflito tradicional e nele a inevitabilidade e justeza das perdas em nome de uma causa, como fizeram tantos outros.
Porque as guerras normalmente preparam-se com recrutamentos prévios, mais ou menos forçados, dos dois lados, ainda que por vezes a tempos diferidos, porque o segundo só reage após detectada a  necessidade de tal. E neste caso, tal como no terrorismo em geral, o recrutamento foi demasiado diferido.
Mas à necessidade de notoriedade deste monstro não lhe bastava uns tantos homens-bomba a fazerem umas tantas vítimas no meio de pequenas multidões. Isso daria uma notícia em pé de página e ele queria dramas que consternassem o mundo.
Que nada tinham a ver com a promoção de uma qualquer causa mas unicamente com a garantia da sua imortalidade na memória da humanidade, nela se registando como aberração sem precedentes através da forma ignóbil e massiva dos crimes que inspirou.

Por tudo isso, por sabermos que lhe estava mentalmente vedado entender a diferença entre o poder e o fazer – porque afinal o que fez já passou, passa e continuará a passar por milhões de mentes e fantasias infantis que felizmente acabam por evoluir e perceber que os pecheee’s estão interditos à realidade, o que não sucedeu com ele - é que não faz sentido a sua execução e muitos menos este coro de regozijos políticos.

Porque o mundo civilizado tinha obrigação de fazer valer a sua diferença, que é a de não ser igualmente selvagem, primário, gratuitamente vingativo, e em vez de o abater sumariamente congratulando-se com o facto deveria tê-lo aprisionado e feito responder pelos seus crimes contra a humanidade.

Talvez não percebesse ele, mas perceberiam muitos outros, mesmo entre os que vivem nas realidades e mentalidades islâmicas e muçulmanas, alguns dos quais não sei agora se vão perceber alguma coisa deste acto e das reacções deste (outro) mundo que se proclama o civilizado...

É assim como tentar convencer os adeptos de um clube que o outro é que é o bom e o que tem a razão, atirando bolas de golf e verylights para o meio da (outra) claque...