sexta-feira, 1 de julho de 2011

Relatividade




Passo todos os dias numa daquelas vias que se constroem para num futuro qualquer se tornarem formas de escoamento de um tráfego intenso ainda por descobrir.
Para já passam por lá meia dúzia de tipos atentos (como eu...) às alternativas rápidas de chegar depressa ao que tantos aceitam levar meio dia a alcançar...
A Avenida de dois sentidos dá a cada um três faixas largas e os cruzamentos são desnivelados, por passagens aéreas ou subterrâneas.
Por isso circular por ela era um regalo.
Até há uns tempos - e quase de certeza para alguém se abotoar com uma bela comissão - a encherem com irritantes sinais controladores da velocidade que disparam sempre que uma momentânea distracção nos atira para uns estonteantes cinquenta e um quilómetros/hora...
Já muito escaldado circulo nela particularmente atento e quando calha ver pelo retrovisor aproximar-se um paspalhão que ainda não percebeu que também por ali depressa e bem não há quem é hábitual a minha higiene mental preencher o tempo de castigo parado à espera do regresso do verde com impropérios destinados ao incauto, quando inevitavelmente acaba por se imobilizar ao meu lado, ou a mastigar em surdina considerações muito mais brandas no caso de ser uma dama...
Porque as mulheres e eu, enfim...
Bom, e nessas extrapolações de génio mal parado sobra-me sempre um mimo para a inteligência parda que se lembrou de ali pôr os ditos sinais e outro para quem os calibrou.
Porque a duração do vermelho, sobretudo quando disparado pelos raros peões que por ali se atrevem, é uma enormidade completamente injustificada.
Até ontem...
Quando fui de novo apanhado pelo vermelho sem ter prevaricado no pedal.
Não me foi pois difícil atribuir a culpa ao grupo de peões que no passeio junto ao malfadado botão aguardava pelo seu verde e senti-me logo a azedar...
Mas depois rendi-me.
O grupo era formado por oito jovens, todos portadores de deficiências não detectáveis ao primeiro olhar mas facilmente confirmadas por observação mais atenta, até pelo modo esforçado e descoordenado de se moverem.
E foi um daqueles momentos, com o estado de espírito em mutação súbita, acompanhar o atravessamento daqueles meninos, provavelmente de regresso à instituição que os junta e sociabiliza, orientada efusivamente pelo mais pequeno e ágil deles, que seguia à frente, sempre a agradecer-me, enquanto os outros, de mãos dadas, generosamente iam suprindo as dificuldades maiores dos parceiros.
E se aquela manifestação espontânea e colectiva de solidariedade era já em si mesma motivo enternecedor o gesto que me dirigiram no final da travessia deixou-me à beira das lágrimas.
Porque quando finalmente chegaram todos ao passeio oposto rodaram de modo a virarem-se para mim, apesar das suas diferentes insuficiências motoras, e assim se inclinaram e me dirigiram a vénia mais desengonçada a que já assisti, complementada depois com efusivos acenos das mãos finalmente largadas.
Há muito que o meu vermelho dera lugar ao verde, enquanto percebi finalmente a relatividade das durações daquele semáforo, e que um tempo que se me afigurou sempre morosidade exagerada e absurda constituía para eles afinal uma exigente brevidade, motivadora de enorme stress, receio e ansiedade.
E hoje, quando o semáforo me travou outra vez, já sorri.