terça-feira, 4 de outubro de 2011

Outra, por favor

Já tinha saudades de vaguear uma pequena história agridoce e para isso basta-me sentar num lugar impessoal, se for atraente e mundano melhor, pedir uma bebida e deixar-me ir ter com ela…
E quase sempre ela surge a travestir formas de solidão escondidas de si mesmas e só relutantes em aceitarem-se…

Magritte, Os amantes

Levantei-me e fui ter com ela à esplanada que em frente ao bar do hotel nos prendia a vista ao mar já bordado pelos reflexos de oiro branco do entardecer.
Há dias que sentia aquela atenção a palmilhar por ali o tédio dos finais de dia, quando aguardávamos que servissem o jantar, mantendo os dedos abraçados a uma cuba livre que alongava pela espera enquanto ela ia bebericando um gin diluído em fastio e água tónica.
Pedi para me sentar do outro lado da mesa baixa de palhinha e vidro e, já acomodado na poltrona forrada a lona branca, encarei-a tranquilamente, antes de encetar o inevitável e indispensável diálogo.
Que abordámos como conhecidos, embora nada mais nos ligasse ainda que aquela simples e recente troca de olhar, discreto mas crescentemente embrenhado no acicatar de um interesse tão mudo quanto eloquente.
Trocámos nomes, abordámos vagamente o que fazíamos durante o dia e titubeámos algumas frases e assuntos, na tentativa pouco empenhada de alargar o espectro oratório, mas pouco depois calámo-nos, amarrados a esse olhar cruzado e já sem escapatória.
E foi ainda nesse silêncio que me levantei para, contornando a mesinha, colocar as mãos atrás da cadeira dela, recuando-a quando se ergueu.
Atravessámos o átrio e nem mesmo no elevador, onde seguia outro casal, trocámos mais palavras, só o olhar periférico nos manteve cientes da presença um do outro.
Fui eu que carreguei no botão e por isso saímos no meu andar.
Algumas horas depois liguei para a cozinha a pedir um jantar tardio e era já de madrugada quando a senti deslizar do meu lado e começar a mover-se pelo quarto.
Na preguiça que me invadia deixei-me estar naquele limpo inerte e só vagamente distinto do sono pela consciência envolvente, enquanto pressentia os seus movimentos e ouvia um restolhar ligeiro de roupa, que só pararam quando o clic da porta a fechar, abafado pela antecâmara, devolveu ao quarto a exclusividade ruidosa do trânsito da Avenida.
Nessa mesma tarde vi-a chegar acompanhada ao hotel e sentaram-se perto de mim.
Mesmo sem esforço percebi na conversa que ele chegara nessa manhã e que iam ver no dia seguinte a casa para onde se iam mudar.
Lembro-me bem porque foi esse o dia em que um pedido meu admirou o barman:
- Outra, por favor.

terça-feira, 2 de agosto de 2011

Enfim

Nada me custa admiti-lo, muito menos dizê-lo, poesia é coisa dos outros, o que nunca me impedirão é de a ela me consentir.
Hoje, mulher, atrevi-me, por ti.
 
 
 
 
Enfim

Ontem,
quando passei por ti assim,
sem aragem,
corria um tempo mau e ruim,
uma voragem
que ensombrava o céu de mim,
mas selvagem
dei-te aquele beijo, quase de Caim,
numa vertigem,
e os cachos do teu cabelo de jasmim,
como uma nuvem,
libertaram-se e espalharam sobre mim
a tua coragem.
Anichei-me em ti e encontrei o sem fim.

A. Rodin

sexta-feira, 1 de julho de 2011

Relatividade




Passo todos os dias numa daquelas vias que se constroem para num futuro qualquer se tornarem formas de escoamento de um tráfego intenso ainda por descobrir.
Para já passam por lá meia dúzia de tipos atentos (como eu...) às alternativas rápidas de chegar depressa ao que tantos aceitam levar meio dia a alcançar...
A Avenida de dois sentidos dá a cada um três faixas largas e os cruzamentos são desnivelados, por passagens aéreas ou subterrâneas.
Por isso circular por ela era um regalo.
Até há uns tempos - e quase de certeza para alguém se abotoar com uma bela comissão - a encherem com irritantes sinais controladores da velocidade que disparam sempre que uma momentânea distracção nos atira para uns estonteantes cinquenta e um quilómetros/hora...
Já muito escaldado circulo nela particularmente atento e quando calha ver pelo retrovisor aproximar-se um paspalhão que ainda não percebeu que também por ali depressa e bem não há quem é hábitual a minha higiene mental preencher o tempo de castigo parado à espera do regresso do verde com impropérios destinados ao incauto, quando inevitavelmente acaba por se imobilizar ao meu lado, ou a mastigar em surdina considerações muito mais brandas no caso de ser uma dama...
Porque as mulheres e eu, enfim...
Bom, e nessas extrapolações de génio mal parado sobra-me sempre um mimo para a inteligência parda que se lembrou de ali pôr os ditos sinais e outro para quem os calibrou.
Porque a duração do vermelho, sobretudo quando disparado pelos raros peões que por ali se atrevem, é uma enormidade completamente injustificada.
Até ontem...
Quando fui de novo apanhado pelo vermelho sem ter prevaricado no pedal.
Não me foi pois difícil atribuir a culpa ao grupo de peões que no passeio junto ao malfadado botão aguardava pelo seu verde e senti-me logo a azedar...
Mas depois rendi-me.
O grupo era formado por oito jovens, todos portadores de deficiências não detectáveis ao primeiro olhar mas facilmente confirmadas por observação mais atenta, até pelo modo esforçado e descoordenado de se moverem.
E foi um daqueles momentos, com o estado de espírito em mutação súbita, acompanhar o atravessamento daqueles meninos, provavelmente de regresso à instituição que os junta e sociabiliza, orientada efusivamente pelo mais pequeno e ágil deles, que seguia à frente, sempre a agradecer-me, enquanto os outros, de mãos dadas, generosamente iam suprindo as dificuldades maiores dos parceiros.
E se aquela manifestação espontânea e colectiva de solidariedade era já em si mesma motivo enternecedor o gesto que me dirigiram no final da travessia deixou-me à beira das lágrimas.
Porque quando finalmente chegaram todos ao passeio oposto rodaram de modo a virarem-se para mim, apesar das suas diferentes insuficiências motoras, e assim se inclinaram e me dirigiram a vénia mais desengonçada a que já assisti, complementada depois com efusivos acenos das mãos finalmente largadas.
Há muito que o meu vermelho dera lugar ao verde, enquanto percebi finalmente a relatividade das durações daquele semáforo, e que um tempo que se me afigurou sempre morosidade exagerada e absurda constituía para eles afinal uma exigente brevidade, motivadora de enorme stress, receio e ansiedade.
E hoje, quando o semáforo me travou outra vez, já sorri.

segunda-feira, 20 de junho de 2011

A hóspede




Ir para África disposto a transformá-la num recurso paliativo para obter distancia do mundo reconhecido e de uma perda pessoal marcada ainda pela incompreensão e revolta, porque permanecia como cruel e injusta desforra de forças desconhecidas e hostis, pode conduzir-nos a processos vivenciais e psicológicos complicados.

A hóspede

Mas foi assim que fui dar a Luanda, após uma morte tão súbita e inesperada como inexplicável.
Larguei desajeitadamente o que tinha e, mentalmente bloqueado, parti simplesmente, aceitando as pancadinhas nas costas como incentivos de recuperação.
Um ano depois percebi a ingenuidade e voltei a pôr a solidariedade no sítio que a merece, um nicho de amigos muito restritos onde não cabem interesses materiais partilhados.
E como tinha nascido numa outra África, já extinta, em que a natureza ficava só à distância da curiosidade aventureira, também as ideias preconcebidas de poder vaguear a minha ânsia de liberdade e isolamento se desvaneceram nessa Luanda, onde entre o penoso e moroso ir e vir laboral sobrava só uma clausura forçada em hotéis e domínios residenciais protegidos pela presença constante das silhuetas vigilantes.
Meter-me no jipe e ir ao fim de semana até paragens distantes, ainda que ao abrigo da segurança proporcionada por um qualquer e esporádico resort de luxo, só era possível se me dispusesse a aceitar a integrar uma excursão mínima de dois jipes e a companhia de parceiros cujos apertos e labirintos de vida tinham também feito aportar aquelas paragens.
Mas fazê-lo não estava nos meus humores, porque o que ali me conduzira não se coadunava com pescarias colectivas e conversas generalistas sobre mulheres, pretos presunçosos ou carreiras que a acreditar neles não justificavam a sua presença naquele cenário tão vil e mercantilista.
Por isso foi crescendo em mim um ressentimento nascido de afinal não conseguir sequer tocar as condições básicas que me tinham feito romanticamente imaginar aquele como o lugar onde podia ir readquirindo anticorpos contra a o desalento e a amargura.
E á medida que o tempo passava a claustrofobia imposta foi-me tornando indiferente, cínico e revoltado com o meu engano e com tudo o que me rodeava.
Pelo meio ia-se esbatendo também uma certa coerência comportamental, que anteriormente gostava de erguer como mais-valia pessoal, porque a sentia, até pelo que via constantemente em redor, desenquadrada da lei da selva vigente, daquele salve-se quem puder e souber, numa sua acomodação livre a valores e modelos existenciais sem qualquer regras éticas e morais.
Porque naquela nova babilónia os vícios privados se tornavam progressivamente o único brinquedo que restava.
Vivia então numa House das irmãs de um ministro poderoso, que se permitiam escolher criteriosamente os hóspedes, e que na lotação plena andariam pela vintena.
O ambiente era sereno, bastante mais intimista e melhor que o dos melhores hotéis, sempre alvoroçado pela impessoalidade dos ocupantes em trânsito temporário e sôfrego de contactos e visibilidades, e curiosamente também o próprio serviço era muito mais personalizado, embora sem mordomias excessivas.
Mas ainda que houvesse rigor nos horários das refeições, sempre marcados por sobressaltos frequentes, porque desenvencilhar-se do trânsito anárquico e permanentemente engarrafado era também uma incógnita em termos de duração, sendo os restaurantes uma fraca alternativa, sobrava depois deste alvoroço diário um convívio mais calmo no pátio da House, entre o corpo da casa mãe e o dos quartos, onde era servido o café e finalmente se podia molengar aquele calor abafado e cansativo, ou até e com a contenção devida às proprietárias desentorpecer alguma má língua local.
Pátio que aos fins-de-semana se tornava quartel dos que não se deixavam seduzir pelas excursões mais longínquas nem pelo assalto balnear á ilha, onde os técnicos estrangeiros e os poderosos locais disputavam os restaurantes, também eles prevenidos de seguranças armados.
O centro comercial que depois se tornou numa nova variante destas limitadas alternativas era então ainda e só uma construção em curso.
E porque era impossível não criar laços com os poucos que como eu residiam em permanência na House foi-se estabelecendo entre nós um código e uma estranha solidariedade que nos distinguia dos que ali iam passavam esporadicamente, acolhidos pelas suas referências abonatórias, ou outros que de tempos a tempos reapareciam, técnicos de ONG´s, formadores, ou personagens ligadas à fiscalização e auditoria de algumas actividades de iniciativa estrangeira em Luanda.
Estes permanentes resumiam-se a três casais, curiosamente constituídos todos apenas por um elemento trabalhador - que num dos casos até era a mulher, o que como é óbvio destoava da generalidade – a um gestor bancário, uma formadora lusa ou angolana, conforme a sua conveniência decidia, e eu próprio, os únicos três que ali estavam sem enquadramento familiar, embora no caso do gestor, o Augusto, fosse casado e pai, e ela, a Graça, que se auto intitulava jocosamente como a presidente do povo, tivesse um namorado em Lisboa. Eu não me abria muito, mas era óbvio também que nada de importante deixara, até porque durante um período tive também comigo a minha outra filha.
Esse estatuto partilhado de únicos residentes livres acabou por nos dar um conhecimento mais subtil das orientações e preferências individuais, tal como uma certa solidariedade baseada na não agressão e por isso quando num certo domingo deparámos á chegada de uma ida à praia com uma nova hóspede, acabadinha de chegar entrámos os três em ebulição.
Porque ela era uma presa apetecível para todos, considerando as preferências que já reconhecíamos uns nos outros. Porque para além do Augusto e eu sermos claramente heteros – o que por aquelas paragens nem se pode considerar uma regra muito garantida – a Graça, por muito que propagandeasse o seu compromisso deixara-me progressivamente a convicção de ser bi, preferencialmente lésbica, e em qualquer dos casos definitivamente autoritária e dominadora.
Era uma mulher grande que por ter uma percentagem discreta de sangue negro disfarçava bem o facto de ser também um pouco cheia,  em que o mais assinalável era o seu feitio e exuberância, alternando das boas para  as más disposições sem transições nem motivos compreensíveis, falando com todos e fazendo dessa informalidade permanente uma porta para criar e personalizar conhecimentos com todos os que com ela se cruzavam.
Ele, o Augusto era bem apessoado e declaradamente peneirento, sendo provavelmente de todos aquele cujo charme mais saltava à primeira vista mas acabava por se apagar um pouco na paisagem dinâmica daquele ambiente fechado, quando a Graça e eu nos lançávamos numa desgarrada cativação verbal, cruzando temas e humores com que pretendíamos fixar a atenção da visitante.
E foi assim durante toda a quinzena em que a ela permaneceu em Luanda.
Em conjunto proporcionámos-lhe serões interessantíssimos, sempre abrilhantados pelas poses de galã do Augusto e pelas gargalhadas e opiniões cruzadas da Graça e minhas, e desdobrámo-nos a levá-la a todos os lugares que podiam caber numa estadia tão breve, desde as melhores vistas, os melhores restaurantes, as melhores praias da ilha e até uma excursão a Cabo Ledo, com paragens em todos os lugares cativantes e apelativos à sua máquina e câmara.
Após o café da noite os serões prolongaram-se insolitamente com os quatro presentes muito para além do que ali era ali praticamente tido e respeitado como hora do recolher, o mais tardar um pouco além das vinte e duas, e o fumar dos últimos cigarros, que nos tirava aos quatro dos quartos onde tal era rigorosamente proibido, chegava a suceder perto da uma da manhã.
A cativante intrusa, embora denotasse discreta consciência da atracção que provocava conseguia contudo manter e aparentar uma perfeita equidistância relativamente aos seus três admiradores confessos, sem nunca demonstrar qualquer preferência ou preterência.
Além de ter sido rápida e elogiosamente alcunhada também pelos os empregados da casa como Miss House, tal o corrupio de desvelos e atenções que em todos despertava.
Era uma mulher particularmente elegante e harmoniosa de corpo e feições, de conduta e posturas irrepreensíveis e discretas, formadora de relações públicas, mas o que mais me cativava nela era a sua atitude tranquila, cândida, graciosa e simultaneamente atenta a todos e a tudo.
E após o regalo final do passeio a Cabo Ledo, que todos reclamámos inequivocamente como fruto da iniciativa pessoal aproveitada pelos outros dois, no regresso levámo-la a jantar ao lugar mais elegante e selecto de Luanda.
De volta à House despedimo-nos pesarosa e já saudosos daquele tempo agitado pela boa surpresa que constituíra a sua presença, pois partia na madrugada seguinte, a horas tão impróprias que nem mesmo o mais cavalheiresco empenho nos faria deixar de delegar no chauffer da casa a obrigação de a levar ao aeroporto.
E nos dias seguintes embrenhámo-nos todos nas obrigações desleixadas pela prioridade com que acorrêramos a preencher a estadia da nossa amiga com atenções acumuladas, quase não nos cruzando na House, pois também aí chegados logo desaparecíamos apressadamente nos quartos.
Mas finalmente encontrámo-nos os três no pátio alguns sábados depois, após um pequeno-almoço menos apressado, decidindo pouco depois partilhar o dia que se oferecia radioso em refrescantes banhos na ilha.
Já ao findar dele e no regresso parámos para comer qualquer coisa no Clube Naval e foi aí que conversámos pela primeira vez sobre a ausente.
Lenta e envergonhadamente confessámos um a um que perdêramos o hábito do convívio ao café e fim-de-semana porque ultimamente dedicáramos as horas livres quase exclusivamente ao correio, ao Skype e ao Messenger.
Depois de alguns silêncios embaraçosos um de nós acabou por confidenciar que tal se devia a longas e diárias conversas com a nossa amiga comum, e após alguma desorientação colectiva, os outros acabaram por admitir como seu motivo de afastamento razões rigorosamente coincidentes…
E cada um terá deduzido também a razão porque durante a sua estadia dormira sozinho apenas duas em cada três noites...

quinta-feira, 19 de maio de 2011

Foi ali




Senti o espírito tão entorpecido como encantado e evitei olhar-te de frente, temeroso de assim denunciar o quanto estava estupefacto, estarrecido e simultaneamente embevecido.
Nunca acreditara que existias mas reconheço que não tentara sequer criar-te no imaginário, quanto mais procurar-te no mundo real.
E no entanto ali estavas, a olhar-me também de soslaio, com um sorriso que ainda não me atrevia a descodificar, de ombro encostado ao meu como se nos conhecêssemos de sempre, enquanto apoiava no balcão a tontura provocada pelo teu aparecimento.
Apesar de ter voado milhares de milhas para corresponder às trinta que tu deixaras para trás e depois do compasso de uma semana de hesitação, preenchida em disparates somados só para disfarçar e acalmar essa ânsia de correr para ti.
Porque se sobrepunham sobreavisos contraditórios, encorajamentos sobre ti, que podias ser o que não podia existir, e um coro de troça a desmenti-los.
Esses disparates, soube-o logo, mais não eram que cobardias a desviarem-me de um mergulho no ridículo  dessa crença súbita de poder materializar o impossível, cedendo ao impulso que pressentia também não ter retorno nem recuperação.
Se um dia me voltares a olhar saberás que não, que abriste, materializaste e encerraste uma fantasia impossível apenas por existires e te teres mostrado.
Não sabia nem sei ainda hoje definir porque ao fim de tantos anos senti que tinha chegado ao meu destino mas contudo essa era a única certeza que se me impunha naquele estado de total prostração racional e perplexidade emocional.
Porque o prenunciáramos até, a partir do momento em que a resposta à tua provocação ficou presa na percepção confusa que iria despoletar o caos absoluto em tudo o que era, conhecia e desejava, lançando-me num abismo desconhecido e insuspeito.
E que depois, contrariando todos esses alarmes que bradavam ao meu bom senso, se escapuliu repentina e descaradamente, incendiando duas vidas que dormiam na convicção de estarem onde queriam.

Pouco importa agora remoer inseguranças e apontar maldosas coincidências ou obrigar-me a enterrar num esquecimento forçado tudo o que a partir daí resvalou para a mediocridade e cobriu esse clarão de utopia que me atingiu e cegou, porque agora sei que foi ali que o céu se abriu e me sorriu.


segunda-feira, 16 de maio de 2011

INCPP



Ou um espírito gaiteiro que não resiste...

INCPP - Inovação e Criação de Novos Produtos Portugueses

Procuram-se meninas patrióticas.

Se é Portuguesa, jovem, patriótica e disposta a servir o seu país tem aqui a oportunidade que procura.

Exige-se:
- Discrição e sigilo absolutos.
- Boa aparência física e sexapeal.
- disponibilidade total e domínio das técnicas de indução de acessibilidades a figurões da economia e política internacional.
- Estofo para servir, comer e calar, em nome da redução da Dívida Portuguesa.

Oferece-se:
- Farda apelativa, tipo camareira, recepcionista, tradutora, guia turística, massagista, fisioterapeuta, médica, enfermeira, bombeira, polícia, mecânica, caixa de supermercado, empregada de mesa, balcão, franchising, shopping, etc..
- aparições públicas na companhia de J. Sócrates, P. Coelho e P.Portas (reconhecido o desinteresse deste pelo sector oferece-se em alternativa integração na entourage do S. Lopes)*
- Inclusão bem remunerada, vitalícia, livre de cobrança fiscal e presença em Comissão Estatal sem função no próximo elenco governativo, já devidamente negociada e aceite pela troika.
- Smart fortwo ( Ald renovável de 4 em 4 anos, em cores alternadas laranja e rosa).
- Inclusão central no poster gigante do Natal de 2011 da revista Playboy Portuguesa

* Havendo orientação sexual alternativa garante-se a plena e discreta satisfação da mesma.

Respostas:
Por sms com número identificado para o telemóvel 941230069
Receberá resposta pela mesma via, a marcar a data, hora e local onde se apresentar para avaliação prévia e selecção do grupo de finalistas a sujeitar posteriormente à decisão final do FMI.

Diogo Metro e Tugasalino
Presidente do Conselho de Administração do ICNPP

terça-feira, 10 de maio de 2011

Entre Paraísos





Entre paraísos

Refeita a mochila metera-me de novo ao caminho, ansioso por deixar na cidade a ilusão alimentada que a passagem nos dias anteriores pelo paraíso com a Isa poderia ter continuidade ali.
Essa convicção fora criada a partir do momento em que ela se juntara inesperadamente à fogueira com que tornava aquela noite húmida mais acolhedora, só povoada pelo rugir bravio do mar, escancarada ao infinito de um manto azul escuro estrelado e também à poderosa afirmação de autonomia que me marcou o final da adolescência.
Viera em magote juvenil, próprio das férias grandes, mas rapidamente me cansara do seu corrupio constante, entre as catembes no bar do parque de campismo, onde alternativa ou acumulativamente alguns seduziam estonteantes bifas da Cidade do Cabo para uma mal speakada marmelada continuada na discoteca do hotel.
E refugiara-me ali, acendendo aquele lume discreto e afastado do balbucio habitual, talvez porque fora dos primeiros a vir, nos anos anteriores, e já tinha percorrido aqueles mesmos desígnios mundanos.
O aparecimento da Isa fora nesse quadro de isolamento procurado um acontecimento totalmente diferente e logo destrinçado da habitual prioridade flirtista.
Primeiro porque era conhecida e não uma anónima e ocasional estrangeira, estas tão prontas como nós à aventura sazonal e descartável, de avanço definitivamente imprevisível, porque havia as que a seguiam até ao fim e outras que esporadicamente retrocediam para o abrigo desaconselhável das roulotes dos seus enormes e toldados papas.
E também porque tinha dela a ideia de marrona do liceu, muito metida com as suas matemáticas, embora reconhecesse desperdício nessa exclusividade pois já lhe detectara anteriormente a figura atraente e o que então confirmei, que era culta, versátil, espirituosa, e quando queria conversadora e companhia cativante.
E por isso naquela noite e nas duas que se seguiram construímos de forma entusiasmada e aparentemente mútua uma interacção empolgante, com um ou outro beijo de permeio, mas sem grande fixação nessa esfera, até por sermos ali claramente os que a tinham repudiado.
Quando ela se despediu, pois regressava com os pais para a cidade, pareceu-me inteligente fazer o mesmo, para nesse regresso à normalidade vivencial perceber se a empatia nascida fora mero episódio de companhia casual ou se resistiria ás diferenças dos mundos em que por lá nos movíamos.
Porque definitivamente eu não circulava entre os caixas-de-óculos que habitualmente a rodeavam nem ela parecia compatível e interessada nas tropelias mundanas em que usualmente me integrava.
E quando depois de um regresso pitoresco e desesperantemente lento, percorrido no maxibombo e ferryboat obrigatórios, a procurei no club de mini golfe, foi a decepção que encontrei. Nem ela parecia disponível para abandonar o seu grupo de totós desjeitados e presuncosamente intelectuais nem consegui resistir ao segundo pleno de buracos, o que para além do mais me tornou ali também odioso.

De regresso à Ponta do Ouro, praia-paraíso selvagem na extremidade mais Sul de Moçambique - a que o meu pai acrescentara uma das primeiras casas de férias e que durante aquelas disponibilizei aos companheiros apesar de só lá ir tirar o sal - apoderei-me durante o tórrido dia da sombra formada por um curioso triângulo de três pequenas arvores que tinham nascido avançadas no areal da praia, implantado um pouco a Norte do hotel.
Ali me refastelava então indolentemente durante o pico do calor, que era praticamente toda a fase diurna, privatizando aquela formação vegetal e beneficiando da sua insólita frescura, embora de vez em vez atravessasse o areal e desafiasse a furiosa rebentação, passando depois meia hora protegido dela e na crista do ondular forte e vivo e de um Índico ocasionalmente visitado por tubarões.

Tinha passado pelas brasas um tempo indeterminado e estava ainda a reagrupar preguiças para ir comer qualquer coisa ao hotel, afastado dali pouco mais de cem metros quando ao meu lado um sussurro feminino me trouxe palavras inglesas.
Olhei, ainda meio estremunhado e vi aquela que era, desde o início dessa temporada balnear, o motivo de todas as conversas e cobiças babadas do grupinho que acompanhara.
Era a mulher mais deslumbrante que estes olhos que a terra há-de comer tinham visto até então.
E sabia até, pela bisbilhotice fervilhante dos dois lugares onde obrigatoriamente me podia alimentar, que era a figura principal de um filme estrangeiro que estava a ser parcialmente rodado ali.
Já a vira na primeira noite, em que dera uma saltada à discoteca, quando entrara acompanhada pelo séquito das filmagens e muito em particular por um galã que fizera em contraponto com ela as delícias do mundo feminino presente.
Embora já tivesse percebido então que as mulheres usam um código nem sempre coincidente com o meu sobre a beleza masculina não me fora difícil detectar no espécime todos os atributos necessários a uma preferência generalizada no sector, já que se tratava de um homem muito alto e elegante cuja cuidada e basta cabeleira loira, tão clara quanto o aguado dos olhos azuis, enquadrava feições perfeitas e harmoniosas.
A mulher que tal como ele andaria pelo meio da casa dos vinte era a correspondência perfeita para prender a atenção masculina tradicional, embora de tipologia e morfologia físicas totalmente contrastantes.
Tinha um corpo escultural, proporcionado e mediano que revelava a sua origem latina, culminado na farta e brilhante cabeleira que valorizava um desenho facial perfeito e exótico, acrescentado pelo contraste e vivacidade de expressões que tornavam difícil afastar os olhos dela, pois conseguia transmitir alternadamente um completo alheamento à envolvente e uma escaldante atenção focada.
Para além disso distinguiam-se ambos por se movimentarem de forma coordenada e langorosa, como se fossem guiados por um ritmo exclusivo e inacessível aos demais, abrindo nesse seu deambular autista pela pista uma clareira espontânea entre a multidão, rendida à contemplação daquele centro incontornável de todas as atenções.
Deles guardei nessa visão a ideia de um par perfeito e romântico, antes de me retirar para o viver eremita que elegera como forma de atravessar essas férias.
Era pois ela, a mulher-deusa do cinema longínquo, quem se abrigara também no meu refúgio do calor diurno durante a minha sonolência e se me dirigia, confortável e paralelamente deitada a menos de um metro do meu corpo.

Passámos lá a tarde, numa tagarelice e mímicas divertidas e animadas, alternando o inglês, quando este me era insuficiente, com um italiano absorvido do neo-realismo cinéfilo e um gesticular de larga liberdade e amplitude.
Diálogo que levámos nas passeatas à beira-mar para colhermos dela salpicos de frescura e que teve o imediato condão de apagar da minha mente a Isa e o desencanto trazido.
Que simultânea e inevitavelmente inflamou também a curiosidade e a palermice dos meus pares de férias, o que não menos obviamente me reforçou o orgulho afirmativo, pois já notara comentários trocistas dirigidos ao alheamento social que adoptara.
Nessa noite veio mesmo buscar-me ao triângulo para me juntar ao seu grupo na discoteca, apresentando-me a todos e dançando exclusivamente comigo.
O seu belo companheiro foi também de uma delicadeza e simpatias insuperáveis para comigo o que, para além de me confortar, esboçava interrogações que contudo não me atrevi a intrepertar e explorar de imediato.

Já de madrugada despedi-me dela com grande emoção, pois sentia que o simples facto de me ter dedicado a sua preferência era já em si mesmo prémio para a nascente convicção que iria no futuro reforçar a minha independência e definitivamente orientar-me por decisões pessoais e não pelo pensar e agir socialmente alinhado e abrangente.
Já com todo o grupo instalado no autocarro ela manteve-se junto a mim numa despedida marcada pela intensidade dos olhares e foi então que me disse que iriam permanecer dois dias na capital para rodarem curtas passagens do filme.
E que teria pena de não ter lá a minha companhia.

Esta declaração inesperada deixou-me sem pinga de sangue, pois percebi que até então me obrigara a interpretar a atenção dela como mero capricho de fastio, sem acesso a outro desenvolvimento, o que agora subitamente se revelava um erro de leitura imperdoável.
Mas num último arremesso de coragem perguntei-lhe directamente se ela não namorava o seu atraente colega.
Ela olhou-me, virou-se para as janelas do autocarro e apontando para uma delas, onde vi um dos elementos do grupo, respondeu-me:
- Não, o namorado é ele…
Fiquei por momentos confuso e perdido no raciocínio mas observando melhor e vi também pela primeira vez a forma como o ocupante do vidro fixava o galã sentado ao seu lado, e acendeu-se finalmente a luz que até aí faltara ao meu espírito, compreendendo que não se referia a si mesma...
Ela também o notou e sem falar transmitiu-mo por uma expressão simultaneamente divertida e trocista.
Recuperando a agilidade mental perguntei, naquele dialecto que inventáramos e já com ela a subir os degraus, se à hora de partirem, na manhã seguinte, não haveria lugar para mais um...
- ...nem que seja lá atrás, em pé na coxia ou mesmo na bagageira, junto às malas?...
E foi com nova expressão, esta enigmaticamente distante, lançada já sobre o ombro, que me esclareceu que o tinha já reservado, ao seu lado.


quarta-feira, 4 de maio de 2011

Uma improvável coincidência


- para maiores de (mental)idade-


Era a nossa segunda noite e aos repetidos estados eufóricos seguiam-se amaldiçoados mas indispensáveis intervalos.
Porque não fomos feitos da mesma massa, digam o que disserem os filósofos e os cientistas.
E aquela mulher soltava-me ininterruptamente a tampa, não deixava esmorecer as labaredas que incendiara no meu desejo e por isso me incomodavam as pausas incontornáveis à minha natureza de homem.
Não era bela nem sequer se denunciara anteriormente o apelo que transmitira à minha libido assim que mergulhara no perfume do seu encanto.
Há quem lhe chame química, a mim parecia-me loucura pura e intraduzível por um qualquer conceito já acontecido.
E contudo fora muito sereno e mesmo indolente o seu despertar, talvez pela minha percepção não ter desconfiado do que se prometia.
Ela tinha uma particularidade física que obviamente teria sido sempre o chamariz de atenções anteriormente colhidas e que por tal considerei dever poupar e até evitar: umas mamas lindas e firmes, cheias e pontiagudas, até proporcionalmente exageradas face à elegância do corpo.
E por isso também a minha abordagem as contornara, sendo particularmente discreto, e também suave e meigo no seu breve acariciar.
Mas curiosamente essa predisposição e contenção em nada afectou o deslumbramento que despertou em mim aquele mergulho quase ébrio no seu corpo quente e na sua forma de dar e receber sensível e sensualmente intensa.
E assim percorrêramos já uma mão cheia de empolgamentos e êxtases, cada um deles multiplicados muito para além do imaginado.
E ela não tinha forma de os acrescentar ou simular, pois manifestavam-se de forma inequívoca.
Porque há mulheres que sofrem dessa (in)conveniência masculina.
Por isso naquela pausa de guerreiros nunca saciados me surpreendeu ouvi-la perguntar porque sendo tão minucioso e paciente – quase tortuoso – na estimulação de tantos dos seus lugares de prazer desleixara, de forma tão evidente, as mamas.
Disse-lhe o porquê, ela riu-se e abraçando-me retorquiu:
- Meu querido... é bem verdade parte do que pensaste, mas escapou-te a possibilidade de haver uma improvável coincidência: a de eu adorar o que elas provocam...


PS - Dedicado ao recordar de uma mensagem sambista que, tal como Chagall, coloriu um dia cinzento... mas nem tanto moralista. :)

Nem mais nem outros


O atelier do artista... de José Malhoa

Não cai bem reflectir publicamente sobre a íntimidade...

Nem privadas a criticar essa minha ousadia, embora ficasse sempre claro que as lucubrações aqui feitas são layers opinosos sobrepostos a bases fictícias e congeminadas entre fantasia e experiências de vida, misturadas de acordo com as minhas preferências e até (porque não?) carências exibicionistas e propangandistas pessoais - :))) -, conforme refere ainda o sub título deste blogue.

Porque gosto de imaginar situações, de as atravessar, trespassar e desenvolver, talvez inabilmente, através dos pequenos contos que construo e dos enquadramentos que defino para as suas personagens.
E para isso dá-me jeito também vestir o eu das figuras criadas, tendo-o já assumido no feminino e até no plural, tentando desvendá-las ou apenas espreitá-las, pelo verso e pelo reverso.
Que a considerem uma vocação desprezível para um espaço que mantenho público ou mesmo ocupação árida e até ofensiva dos tempinhos que me sobram entendo, mas deixem-me brincar com ela que há formas muito mais nocivas e mesquinhas de os desmerecer.
Houve em tempos quem me enviasse vírus e tornasse quase importante através de campanhas e alertas, facultando sobre mim pormenores que muito me surpreendiam e deixavam estupefacto quando mos contavam.
Por assim o manter aberto torno também óbvia a receptividade à opinião crítica alheia, que é coisa diferente e atraente.

Mas voltando à vaca fria – adoro esta tradução literal do inglês – abordar através de uma perspectiva intimista situações entre o real e o ficcionado e percorrê-las também pelas suas vertentes psicológicas parece-me um exercício que (me) alarga os horizontes da compreensão da complexidade humana e vivencial.
Porque julgar é tanto mais fácil quanto mais estreita e unilateral for a nossa percepção do mundo, das suas realidades e gentes, do existir e do pensar diferentes do nosso.
Porque se os há em tantas formas, algumas chocantes mesmo para os mais tolerantes, é porque se sustentam em imensas e complexas concepções relativas ao mundo peculiar de cada um.
E que terão a sua génese no que se designa por índole ou carácter pessoais, acrescentados das particularidades colhidas em crescimentos mais ou menos atípicos.
Tenha ou não o sujeito disso consciência a compreensão de cada atitude íntima e pessoal, social, política, etc. é fortemente influenciada pela interacção destas duas involuntariedades, a que devemos apor ainda a influência decisiva da consciência e da determinação pessoais de cada um para alterar - ou não - o rumo previsto pela dependência desses factores que nos formaram e foram impostos, e que constituem um desafio em que me dá gozo mergulhar introspectiva e conjugadamente.
Descodificar os cenários desenhados em intimidades particularizadas é pois para mim um prazer e fá-lo-ei cada vez com maior curiosidade e mesmo despudor, porque tenho recolhido desse aventurar por eles a convicção que mesmo centrando-o no imaginário – inevitavelmente influenciado pelo que me tocou e observei em redor – me enriquece e ajuda a relativizar o choque que é sempre viver entre diferentes.
Mesmo ciente de não ser verdadeiramente possível aceder com exactidão ao núcleo central da esfera íntima de cada uma dessas personagens continuará a ser esse um meu atrevimento, com crescente probabilidade de chocar o que lhe junte preconceitos e intentos alheios.
Porque os meus são só estes, nem mais nem outros.

segunda-feira, 2 de maio de 2011

Não basta dizê-lo...



Não basta dizê-lo...

Ser civilizado não é uma declaração mas um estádio da evolução humana centrado na coerência de atitudes e comportamentos.
Que têm mais valor quando posta à prova porque sendo sempre fácil afirmá-la é então mais difícil tê-la.

Comemorar e congratular-se com a morte e o assassinato, ainda que de um monstro, parece-me um acto reprovável, pouco civilizado e mais, perigosamente insensato e eventualmente provocador.
Sentir alívio parece-me justo e humano, mas regozijo não, porque o que nos diferencia da barbárie é exactamente a conduta e o civismo com que lidamos com as formas de a reprimir, combater e penalizar.

Calhou por um acaso a execução de Bin Laden no exacto dia em que há 2 anos perdi uma filha.
Sei pois bem como parece doer ainda mais uma morte para a qual não se encontra explicação ou compreensão, que é o que deverão sentir todos os que perderam entes chegados nos atentados instigados e inspirados por esse facínora da alta burguesia árabe-americana.
Porque se meteu pelo meio um longo fim de semana que atiraria para muitos dias depois uma sequência de autópsias, primeiro a legal e só depois a médica, para procurar explicar a morte de uma menina de 22 anos que morreu a dormir e sem que a polícia técnica e o seu exame local tenham conseguido apurar qualquer causa.
E para além de ninguém poder estar preparado para a súbita perda senti também que prolongar o choque já de si sem atenuantes com uma paragem no tempo assim era insuportável, porque a transformaria numa tortura ainda maior para todos.
Julgo que se tivesse havido a explicação que sempre faltou me seria agora mais fácil suportá-la, não no dia de hoje mas em todos os que decorreram já desde essa fatalidade.

Tentando transpor o intransponível, porque a dor e a perda não se transpõem, será que a partir de agora esses milhares de lesados pelos crimes do Bin Laden se sentem mais confortados e ressarcidos das suas perdas?
Sabê-lo executado e extinto transmite-lhes de alguma forma a sensação que foi feita justiça?
Ou será que ouvir o Barak Obama, o David Cameron, o José Sócrates e até alguns dos ditadores árabes (ansiosos por solidariedades e bodes expiatórios salvadores) congratularem-se com a sua concretização os fará sentir melhor?
Penso que não porque caso contrário isso significaria que consideravam a morte do infame moeda de troca de valor permutável pela perda dessas milhares de mortes que propositadamente provocou.

Sempre achei que o que distinguiu o tipo de crime que o tornou tragicamente famoso foi a sua mania das grandezas, desumana, teatral e monstruosa, numa demonstração de vaidade pessoal e infantilidade mental verdadeiramente doentias e incomensuráveis.
Porque qualquer menino de 3 ou 4 anos atira um avião de papel contra uma torre de lego, faz pecheee e extermina ainda mais inimigos imaginários.
O hediondo é que houve alguém que como ele chegou a adulto assim, para mais muito rico, ainda convencido que esse pecheee era admissível para substituir o seu ócio, os seus recalques e frustrações, para validar os seus anseios de notoriedade e suficientemente exequível para fazer sobressair a sua capacidade de o realizar com seres humanos reais!...
Porque para ele nunca houve vítimas mas apenas meios, coisas que a sua megalomania usou em busca de uma imortalidade obtida pela congeminação de acções catastróficas que se tornassem conotadas com o seu nome, tornando-o inesquecível aos outros pela dimensão gigantesca, cruel e de total desprezo pela condição humana dos actos que instigou e fez concretizar, e para isso tanto se lhe deu que as vítimas fossem do seu lado ou do outro.
Por isso o considerei sempre e só um desprezível verme que por aqui passou convencido que era mais que todos os seus semelhantes.
Foi único? Não, foi apenas mais monstruoso, porque não distribuiu antecipadamente fardas apropriadas que configurassem e legalizassem um conflito tradicional e nele a inevitabilidade e justeza das perdas em nome de uma causa, como fizeram tantos outros.
Porque as guerras normalmente preparam-se com recrutamentos prévios, mais ou menos forçados, dos dois lados, ainda que por vezes a tempos diferidos, porque o segundo só reage após detectada a  necessidade de tal. E neste caso, tal como no terrorismo em geral, o recrutamento foi demasiado diferido.
Mas à necessidade de notoriedade deste monstro não lhe bastava uns tantos homens-bomba a fazerem umas tantas vítimas no meio de pequenas multidões. Isso daria uma notícia em pé de página e ele queria dramas que consternassem o mundo.
Que nada tinham a ver com a promoção de uma qualquer causa mas unicamente com a garantia da sua imortalidade na memória da humanidade, nela se registando como aberração sem precedentes através da forma ignóbil e massiva dos crimes que inspirou.

Por tudo isso, por sabermos que lhe estava mentalmente vedado entender a diferença entre o poder e o fazer – porque afinal o que fez já passou, passa e continuará a passar por milhões de mentes e fantasias infantis que felizmente acabam por evoluir e perceber que os pecheee’s estão interditos à realidade, o que não sucedeu com ele - é que não faz sentido a sua execução e muitos menos este coro de regozijos políticos.

Porque o mundo civilizado tinha obrigação de fazer valer a sua diferença, que é a de não ser igualmente selvagem, primário, gratuitamente vingativo, e em vez de o abater sumariamente congratulando-se com o facto deveria tê-lo aprisionado e feito responder pelos seus crimes contra a humanidade.

Talvez não percebesse ele, mas perceberiam muitos outros, mesmo entre os que vivem nas realidades e mentalidades islâmicas e muçulmanas, alguns dos quais não sei agora se vão perceber alguma coisa deste acto e das reacções deste (outro) mundo que se proclama o civilizado...

É assim como tentar convencer os adeptos de um clube que o outro é que é o bom e o que tem a razão, atirando bolas de golf e verylights para o meio da (outra) claque...

sexta-feira, 29 de abril de 2011

Nada mau



Tenho amigos que uniformizam e catalogam tudo em positivo ou negativo e nada de meios termos. Para eles até os dias pertencem de forma inequívoca a um destes dois qualificativos sumários.
Pela minha parte vou procurando fazer com eles telas mais ricas e coloridas, mesmo dos pequenos nadas que neles se intrometem, sem a mesma obsessão pela adjectivação absoluta...
 
Nada mau.

Depois da despedida rápida desci de elevador e só no passeio ainda distante me apercebi que deixara as chaves em cima da mesa de reuniões.
Voltei mas ninguém me abriu a porta, todos teriam já partido apressadamente para o fim de semana alongado pelos 4 dias que juntavam a Páscoa e o 25 de Abril.
Passava já das 20 horas, voltei a descer até á entrada do prédio mas inusitadamente o segurança desaparecera e assim subi de novo para insistir na porta do escritório, que continuou  contudo inerte e indiferente ao meu desespero.
Liguei depois e ainda do átrio do piso a avisar que já não iria nessa noite nem provavelmente nos dias seguintes para Évora, como tinha combinado.
E pensei desolado na forma de me distrair durante aqueles dias sem carro, pois era evidente que o escritório em que fora à reunião só retomaria a actividade na terça feira seguinte.
Deixava escapar uma imprecação precisamente quando as portas do elevador se voltaram a abrir. Dentro dele viajava uma mulher que me olhou e sorriu divertida com a minha expressão que, além de acabrunhada por ter sido apanhado no desabafo, devia corresponder com exactidão ao estado de espírito que o originara.
Há dias assim - comentou ela quando entrei e olhando para o painel percebi que também descia.
Nem imagina quanto isso é verdade, particularmente hoje - respondi-lhe notando-lhe logo o olhar directo e desempoeirado, pouco habitual numa mulher fechada com um estranho no elevador, e achando o facto invulgar e até atraente.
Também ela o era, mulher de expressão viva, curvas bem delineadas e torneadas, até ligeiramente exuberantes para a estilização standard em voga, e de aparência global construida entre o prático, o cuidado e o moderno.
E o seu sorriso abria-se numa face de traços interessantes e intensos, onde sobressaiam olhos grandes e de um castanho invulgar, claro mas uniforme e sem a habitual mescla esverdeada.
E para que não nos restassem dúvidas sobre o que aquele dia nos reservara o elevador estremeceu e parou subitamente, ainda com o mostrador a indicar o piso 1.
Não posso acreditar! - exclamámos quase em uníssono perfeito, após o que decidi meter o dedo no botão lateral para forçar a abertura das duas meias portas automáticas do elevador.
Quando o consegui revelou-se à nossa frente uma bela e íntegra parede, sem qualquer nesga ou troço de abertura para qualquer dos pisos que nos separavam de uma ansiada liberdade.
Toquei no botão do alarme mas pouco depois tornou-se óbvio que ele só nos traria salvação provável dentro de cinco dias, abrindo-nos uma perspectiva de fim de semana prolongado que acabava de bater em apoteose todos os anteriores prognósticos, já de si bastante negros.
A minha companheira de infortúnio parecia contudo muito menos afectada que eu com o que se perspectivava ali e depois de dar conta das minhas más expectativas perguntei-lhe porque parecia tão conformada e até tranquila.
- Porque hoje já não espero que rigorosamente nada me corra normalmente, respondeu-me ela sem hesitar, como se fosse fruto de um juízo já formado e consolidado anteriormente.
E continuou :
- Logo de manhã tive que ir três vezes reacender o esquentador em pleno banho e com o gel no corpo porque o dito Sr. Inteligente decidiu avariar-se. Acabei o banho com água fria e quando cheguei ao carro verifiquei que me tinham partido o vidro da janela e roubado o portátil, que tinha discretamente guardado na bagageira mas a que muito diligentemente acederam desmontando e danificando o banco traseiro .
Comecei pois este azarado dia cheia de stress mas lá consegui ao fim da manhã e depois de muitas voltas recuperar parte do trabalho que tinha necessariamente de concluir e entregar hoje até ao meio dia porque o tinha parcialmente copiado numa pen.
Como tinha marcada uma ida para Barcelona com saída do avião às 17 horas ainda me esforcei por o terminar a tempo, o que até nem era difícil, mas como tudo me continuou a correr mal tive que a desmarcar, tal como pedir um adiamento até ao final do dia para fazer a entrega combinada.
E apesar de mais uns tantos percalços inesperados e insólitos acabei por enviar tudo há pouco mais de uma hora.
Estava tão exausta que fiquei apaticamente sentada em frente ao monitor esta última hora, à espera do aviso de recepção e leitura e assim me mantive, progressivamente incrédula, até perceber finalmente que tanto esforço e até a desistência do fim de semana fora tinham sido gratuitos e inúteis, tornando-se óbvio que só será aberto na próxima terça feira.
E quando finalmente digeri isso e saí, meti-me no elevador mas ele parou três andares abaixo, onde dei consigo a deixar escapar um “que porra de vida esta!” que, embora desconhecendo-o, não me parece ser frase que diga com grande regularidade.
Por isso entendi quase sem o formalizar que acabara de encontrar alguém a passar por um dia equiparado ao meu em termos de qualidade...
...O que este enguiço do elevador comprovou definitivamente - rematou ela fazendo um careta risonha perante o meu ar contrafeito, que dava contudo já os primeiros passos na recuperação de um sentido de humor conformado com aquilo que lhe ia sendo imposto.
E para o provar, e também que não desisto ao primeiro contratempo, disse-lhe:
Não esteja já tão pessimista, ainda vamos remediar esta coisa, vai ver. Agora vou fazer uma série de telefonemas  a confirmar se ainda algum amigo meu anda pela cidade e pedir-lhe encarecidamente que nos venha resgatar.
Mas não andava já nenhum e por isso liguei para o número da esquadra do meu bairro, que não era aquele, mas de onde atenderam e prestavelmente me deram o do quartel dos bombeiros mais próximo.
Liguei e lá me prometeram socorrer-nos dentro de uma hora.
Que passámos a conversar, um pouco mais desanuviados, a certa altura já sentados no chão do elevador e partilhando peripécias da nossa vida onde a sorte e o azar pareciam ter sido factores determinantes.

Quando hora e meia depois alguém gritou “já cá estamos, vamos agora lá abaixo puxar o elevador para o Rés-do-Chão para os senhores poderem sair”, suspirámos e sorrimos aliviados, pois já nos ocorrera que também os bombeiros pudessem ter decido antecipar o seu fim-de-semana.
Como a conversa de cativeiro tinha entretanto percorrido situações enquadráveis nesse capítulo dos azares, até com alguns desvios que nos revelaram um pouco das ideias e caracteres respectivos, julgo que criáramos também uma mútua simpatia e inesperada cumplicidade naquele bizarro convívio.
Quando finalmente e após uns tantos solavancos a caixa do elevador parou no piso térreo saímos e demos de caras com as desculpas do segurança do edifício, por ter ido jantar precisamente quando ficáramos presos, o que fora a causa da demora na nossa salvação.
Facto este que nos causou novo calafrio, depois dos bombeiros regressarem da casa das máquinas e nos confidenciarem que estavam mesmo prestes a desistir de ali nos socorrer quando finalmente o segurança chegara da sua prolongada refeição.
Agradecemos, despedimo-nos e saímos para a rua.
Aí a Joana, assim se chamava, virou-se para mim e perguntou-me se queria que me levasse a casa ou a algum outro lugar, já que não tinha transporte e ela nada de urgente a requisitá-la.
Sentíamos ambos claramente um imenso alívio por aquela liberdade que a cerra altura parecera muito improvável, e embora tivesse hesitado acabei por convidá-la para jantarmos, acrescentando divertido que não me parecia que devesse argumentar com afazeres ou compromissos inadiáveis...
Riu-se com gosto, aceitou sem embaraços e lá fomos,  tentando agora adivinhar a quantos restaurantes iríamos bater antes de descobrir um que nos franqueasse a entrada.
Foi ao sexto, mas a comida era agradável e a conversa melhor.
E ficámos amigos ou decidimos tentar sê-lo a partir dali.
Nada mau para um dia assim.

segunda-feira, 25 de abril de 2011

O cartão de cliente

Pequeno conto sobre uma realidade que não constituirá ainda um mito urbano, como o das casas postas que continuarão a proliferar enquanto houver quem se gratifique com relacionamentos adquiridos pelo poder económico ou com a aceitação silenciosa da dependência a esse mesmo factor.
Mas que me parece cada vez mais plausível de emergir do anonimato imposto pelas grandes urbes, pelas absurdas mobilidades e horários laborais, que conjunta e simultaneamente facilitam uma certa propensão à bigamia mental e duplicidade social.

Picasso

O cartão de cliente

Tinham-se encontrado e conhecido na perfumaria, porque aparentemente ambas tinham detestado o presente.
E por um daqueles desígnios do destino que teimamos em definir como incompreensíveis coincidências - ou anónimas manifestações da vontade divina - a Inês estava com o ombro colado à Marta quando entregou o talão de oferta e a empregada decidiu soletrar interrogativamente o nome do cliente surgido no monitor.
Em uníssono ambas o confirmaram, olhando-se em seguida com surpresa e estranha curiosidade…

Subi no elevador com a porteira brasileira, falámos da chuva e do frio que pareciam ter abrandado mas que afinal regressavam em força neste princípio de Janeiro e abri a porta do apartamento já ansioso por me trocar e atirar para o sofá a ler qualquer coisa.
Tinha sido um daqueles dias esgotantes em que os assuntos acumulados na pausa entre Natal e Fim do Ano decidem atirar-se todos e de uma só vez para cima de mim.
Enquanto me dirigia ao quarto para substituir o habitual e formal traje de trabalho por umas calças largas e um casacão de lã velhos e confortáveis ouvi vozes na cozinha e perguntei-me quem teria a Marta trazido para casa.
Vivíamos assim informalmente há já dez anos e como não fizéramos questão de acrescentar filhos à nossa pacata existência nunca casáramos.
Pelo menos era essa a explicação oficial, embora soubesse que não contemplava a minha secreta conveniência em manter assim informal esse estado de vida comum.
Que tinha essencialmente a ver com nunca me ter sentido confortável com a necessidade de tomar opções perante as encruzilhadas da vida.
Embora a justificasse numa recusa muito minha em magoar fosse quem fosse sei que a verdadeira razão é outra e muito mais egocentrista, porque o que realmente me custa sempre é prescindir dos conteúdos que cada escolha implica.
E assim fui protelando sempre essas decisões difíceis, acabando por desistir mesmo de todas as que pude contornar, adaptando a vida à conciliação de realidades aparentemente incompatíveis para muitos outros
O que não evitou que as encarasse inicialmente com grande desgaste e ansiedade, até aos poucos encontrar um peculiar equilíbrio, necessário para lidar com elas, sistematizando e simplificando processos e procedimentos até as ajustar e integrar num modo de viver talvez reprovável à luz de certa decência moral instituída mas para mim depois perfeitamente rotineiro e tranquilo.
Se já antes me habituara a viver consciente de ter esta inapetência e recusa natas para as escolhas ela tornou-se determinante da minha existência a partir do momento em que me enamorei perdidamente pela Marta.
Porque sendo então casado com a Inês esse facto obrigava-me a uma atitude que nunca me senti capaz de assumir por envolver uma escolha que não soube ou quis resolver.
Naturalmente que a paixão anterior pela Inês se transformou num afecto diferente mas nunca consegui verdadeiramente encarar a hipotética separação dela, porque senti e sinto ainda por ela um afecto e uma cumplicidade amiga que sabia intuitivamente não poder aspirar atingir com a Marta.
Porque a Inês fora aquela paixão da liberdade e da descoberta com que ambos mergulhámos na idade adulta, ainda na fase da Faculdade, desses tempos loucos em que o dinheiro e o dormir não constavam ainda das indispensabilidades para se viver com qualidade e intensidade.
Faculdade que concluímos já casados porque ela engravidou no último ano do seu curso de medicina.
E foi já no final do internado geral dela, quando estava colocada em Mourão e levou o Miguel que ainda amamentava, que conheci e me apaixonei pela Marta.
O surgimento dessa paixão não estava previsto nem foi premeditado, menos ainda procurado, apenas sucedeu de forma espontânea e até contra a minha vontade, sem que conseguisse contudo resistir-lhe.
Quando após o internato a Inês regressou definitivamente a Lisboa para iniciar a especialidade em cardiologia eu vivia há já alguns meses com a Marta e foi então que verdadeiramente percebi que tamanha confusão existencial me exigia uma decisão.
Decisão que todavia nunca se transformou numa prioridade nem se impôs com a clareza indispensável para pelo menos definir qual delas preferia para parceira de vida.
Porque se a Inês tinha a seu favor a cumplicidade construída e partilha do Miguel por sua vez a Marta representava a minha mais perfeita compatibilização com uma mulher, algo que nunca me atrevera sequer a desejar, em termos intelectuais, físicos e também “químicos”, ou seja, uma coincidência e complementaridade de gostos e preferências, tanto sobre valores existenciais, políticos, literários, musicais como na excelência da mútua gratificação sexual.
Esses primeiros tempos de coabitação alternada com ambas na capital foram um autêntico pesadelo, obrigando-me a uma elasticidade e desgaste emocionais e mentais que serviram para inversa e contraditoriamente me treinar no exercício dessa vivência dualista, criando para a sua sobrevivência e sobreposição elaboradas premeditações e programações preventivas com que progressivamente ia adiando a necessidade de optar por uma delas.
Não sei mesmo concretizar muito bem em que altura se me adoçou a convicção que afinal essa escolha não era necessária.
Foi uma ideia que se instalou em mim de forma mais ou menos inconsciente mas nem por isso menos pró-activa e determinada, que me levou a adoptar práticas existenciais duplicadas e uma sua sistematização capazes que me permitirem retomar uma vivência sem sobressaltos e agitações.
A primeira foi decidir qual delas integrar na chamada família alargada, que incluía um pai, irmãos, tios e sobrinhos e qual a que desse convívio seria excluída. Calhou este último papel à Sara, para quem fui sempre filho único e já órfão, porque em última análise havia o Miguel a privilegiar o lado da Inês.
Uma outra alteração no sentido da minha estabilidade psicológica foi ter comunicado a ambas que como engenheiro ligado a uma empresa de construção de estradas e auto estradas tinha acumulado nela funções de chefia de projecto e de acompanhamento e fiscalização das obras espalhadas pelo país.
E que nesse desempenho sobreposto teria que alternar cada semana passada em Lisboa a acompanhar o desenvolvimento dos projectos com outra a fiscalizá-los no terreno.
Foi uma solução providencial e prática que, embora não me salvaguardasse de um eventual encontro deu uma enorme folga à minha até aí agitada agenda de presenças alternadas pelas duas casas, distribuídas a partir de então de forma sistematizada, justificada e pacífica.
Além da probabilidade de ocorrência de um encontro desse tipo se me ter afigurado sempre quase nula já que a Inês era médica em Santa Maria e morava em Telheiras, ali bem perto do hospital, processando-se toda a sua vida quotidiana de forma muito cómoda e centrada em redor do Campo Grande, até por o Miguel frequentar lá o Colégio Moderno.
Situação quase oposta à da Marta, com quem partilhava um T3 em Nova Oeiras e que mudava frequentemente de destino laboral, já que o seu CAP a transformara numa freelancer de sucesso no emergente sector da formação profissional.
Este quadro levantou-me alguns outros desafios, sobretudo de logística, porque saia habitualmente de uma das casas com um trolley anunciando a ela só regressar uma semana depois, que era o período previsto para cada uma das minhas viagens de fiscalização às estradas espalhadas pelo país.
Ora como na prática não saia da cidade tornava-se-me complicado justificar no regresso mudanças radicais na roupa levada, para mais sendo esses destinos na província.
Ao princípio ainda argumentei que nessas semanas me era fácil ocupar as noites solitárias cirandando pelos centros comerciais regionais que começavam a proliferar mas era uma justificação forçada e arriscada porque ambas me conheciam a intolerância quase visceral em permanecer demoradamente nesses locais de consumismo.
E resolvi-o finalmente passando a ter tudo em duplicado. Nunca mais comprei uma única peça de vestuário ou calçado isolada, depositando simétrica e sistematicamente duplicados de tudo o que adquiria nas duas residências.
Assim a minha vida passou a decorrer sem sobressaltos também nesse campo e mesmo o rigor com que inicialmente tentava refazer uma semana depois o conteúdo da malinha com que partira de uma delas deixou de ser relevante pois havendo o mútuo conhecimento do meu vestuário e calçado nenhuma delas estranhava que as peças levadas não correspondessem rigorosamente ás trazidas, até porque me tornei adepto conservador de tipos, marcas e modelos muito específicos, quer para roupas e sapatos de trabalho, quer para ténis ou trajes informais e desportivos de fim de semana, cuja compra aliás repetia de tempos a tempos.
Aproveitei ainda o facto de ambas serem Capricórnio, com aniversários separados por uma precisa semana de diferença, para uniformizar também o que adquiria para elas.
Passei por isso a oferecer-lhes presentes rigorosamente idênticos, beneficiando até dessa coincidente proximidade dos aniversários. Num ano foram relógios, no seguinte brincos e assim por diante.
Ainda não decorreram quinze dias desde que comprei o Allure agora lançado para os seus aniversários quase consecutivos.
Foi uma ideia que me pareceu prática, segura e inteligente, pois assim não haverá fragância a soltar-se de mim que se lhes afigure suspeita e desconhecida, contando naturalmente com a personalidade da minha própria pele para justificar qualquer eventual estranheza no novo Allure…
Lembrei-me porque hoje de manhã a Marta me pediu o cartão de cliente da perfumaria, o que provavelmente significa que no meu já próximo dia de anos também irei ter um frasquinho de cheiros…
Antes de sair do quarto para ir saciar a minha curiosidade sobre a voz inesperada que continuava a ouvir olhei-me ao espelho e reflecti que até aquelas calças e casaco que acabara de vestir, tornados confortáveis pelo muito uso doméstico, tal como o duplicado exacto da outra casa, tinham envelhecido paralelamente ao longo de muitas semanas alternadas.

Entrei na sala e sofri um abalo. Sentadas num súbito silêncio e obviamente à minha espera estavam a Marta e a Inês.

terça-feira, 19 de abril de 2011

A borbulha orfã

A última ceia, esboço a carvão de Leonardo Da Vinci

A borbulha orfã


O tema é decerto recorrente e repetitivo, fastidioso e enjoativo mesmo, mas não há forma de o contornarmos, de tão influente e preponderante ele se ter tornado de repente na vidinha de todos nós e destes dias maus que vivemos, com inevitável agravamento nos que se avizinham.
A política e a mediocridade dos protagonistas que nela nos couberam – ou que nós deixámos eternizarem-se porque é uma matéria definitivamente pouco motivadora, pesada e chata - vinha passando já há muito ao largo da maioria de nós, porque se assemelha a uma daquelas borbulhas adolescentes que teimavam em surgir sempre que queríamos estar chamativos e charmosos, tão inoportunas como garantidas, e não havia volta a dar-lhes!
Mas esta crise é algo que teima em fazer-me querer aprofundar as causas desta outra acne....
Começou realmente quando e quem são os verdadeiros responsáveis por ela?
É obra da inapetência e incompetência gritante dos políticos em exercício ou vinha já de trás?
Quanto a mim ela surge como fruto global da acumulação prolongada por um tempo considerável de exercícios alternados desse mesmo poder e só agora deu à costa porque se tornou impossível aos actuais mantê-la afundada e grogue, não havendo já ginástica ou manobras dissuasoras e diversivas que chegassem para a camuflar e ocultar das atenções exteriores.

Porque a triste verdade é que a nossa crise não foi descoberta cá, pelos nosso especialistas da finança, a queda dos últimos cabelos da nossa careca económica só foi detectada a partir de fora, pelas odiosas agências de rating, essas malvadas que não gostam do Cristiano Ronaldo e do Mourinho, nem da Marisa e dos Chutos e pontapés.
Que em meu entender é precisa e verdadeiramente o mais grave e alarmante nela!

Que o governo mente por sistema já todos sabemos e contamos até, porque nem outra coisa há a esperar de quem mentiu invariavelmente para lá chegar.
Para confirmá-lo basta comparar qualquer programa eleitoral com os resultados da respectiva governação.
Além de tudo o que se deva imputar aos governos desta crise que certamente se foi acumulando e espraiando por um período de tempo considerável e apertando em silêncios e usufruto das mordómias cómodas aos ditos políticos parlamentares ressalta a ignorância, a incompetência ou pior que tudo isto, a conivência colectiva desse leque de oposições, olé-olé-esquerda-direita-olé, esses que tiveram e tem como justificação para serem principescamente pagos pelos nossos impostos o dever de vigiarem, verificarem e denunciarem o exercício do poder, tal como obviamente os seus abusos, descontrolos e desvios.
 Porque não têm outra escapatória admissível, é essa a única justificação para os seus chorudos abonos de parlamentares! Ou a AR é assim como ir a banhos no verão?
Mas teimo na minha, há quanto tempo é que isto se passava e sabia sem que ninguém tenha levantado um cabelo ou mexido um dedo para o revelar?
Ou não há outra vez culpados e o bode expiatório vai ser o objecto único das próximas eleições? Quem as ganhar vem dizer que foi o outro...
Não, não estou a desconversar por ser fã do Eng. Sócrates nem especificamente contra o Dr. Coelho, tenho mesmo muito pouca consideração pelo primeiro e nenhumas expectativas no segundo, o que quero saber é quando é que começou esta indecorosa conivência política geral para fazer um alvo de setas com os cabeças de lista de todos os partidos que foram a votos, sendo governo ou oposição ao longo desse tempo de silêncios criminosos, e também os presidentes, ministros, etc..
Porque assim já posso desligar o LCD sempre que um deles por lá aparecer, agora nas suas poses de grandes entendidos em formulas de resolver esta crise, para chamar os meninos ao exercício de tiro ao alvo...
É que não tenho duvidas ( neste assunto, Sr. Presidente, por acaso no resto tenho muitas e até as certezas andam agora sem jeito, assim meio cambadas, entende?) que tudo isto vai sobrar para eles em triplicado, pelo menos. (É que são meus, os meninos e não as culpas, entende?...)

Também já era certo que dos actos eleitorais portugueses só resultam vencedores - e quero lá saber se lá fora é ou não igual, porque pelos vistos esta crise local surgiu em contra ciclo com o tal mundo global - e não há força política do burgo que o desminta, nem que seja só por uma vez e para ser simplesmente original...

Todos os processos mediáticos surgidos por cá foram resolvidos sempre com mesma estratégia: tornados tão morosos e prolongados, complexos e confusos, e alargado de tal maneira o cabaz de culpados e envolvidos que por fim o resultado de tudo isso foi sempre o desinteresse e alheamento crescente da opinião pública que permitiu a todos eles saírem a proclamar total e comprovada inocência.
Enfim, que por cá a culpa foi, é e será sempre órfã consta de outro saber popular que se cristalizou, no fim até fica sempre a ideia, aligeirada pela nossa preguiça mental, que tudo não passou afinal de uma invenção ignóbil de uns tantos tarados – juízes e inspectores da judite, claro, por acaso entretanto silenciados e retirados dos processos - e que não houve afinal crime nenhum!
Tudo gente séria e honestíssima...
O rabinho dos meninos que lhes doa, ora pois, se eram drogados e faziam aquilo no Eduardo VII para que raio haveríamos de envolver e manchar com essas nódoas sociais a reputação de pessoas tão boas e de bem? E viva a sodomia forçada (que não tenho nada contra o gosto privado de cada um...)
Ou para que serviria esmiuçar e aviltar o curriculum de dirigentes de enorme sucesso desportivo, mesmo a nível internacional, com o processo comezinho sobre um tal apito dourado se afinal o futebol não passa de uns outros tantos marados de volta de uma bola com um outro a apitá-los?
Sejam lá quais forem as maroscas que façam para ganhar não têm importância nenhuma, o melhor mesmo é desagravar, branquear e arquivar de vez.
E sobre os inúmeros escândalos de corrupção deixemo-los sossegados e a marinar até morrerem por si mesmos, todos sabemos que o mundo do poder e do capital é afinal todo igual, mesquinho e vil, por isso para quê perder tempo e energias curiosas à procura de culpados. Sejamos claros, sendo todos ninguém é, ponto e assunto arrumado.
O que sobressaiu sempre de todos eles foi a ideia que quantos mais envolvidos e arguidos melhor porque no fim o resultado foi, é e será sempre o mesmo: sendo todos só “um bocadinho distraídos” - que nem culpa chega a ser porque não passaram de descuidos sem intenção, claro - no fim são já tantos os metidos ao barulho que fica tudo emperrado... até se concluir que não houve, há ou haverá nunca culpa de coisa nenhuma, mas afinal e só muita má interpretação, má vontade, difamação, infâmia e até inveja do protagonismo!
Crimes? Mas quais crimes?

E viva Portugal-olé!