terça-feira, 4 de outubro de 2011

Outra, por favor

Já tinha saudades de vaguear uma pequena história agridoce e para isso basta-me sentar num lugar impessoal, se for atraente e mundano melhor, pedir uma bebida e deixar-me ir ter com ela…
E quase sempre ela surge a travestir formas de solidão escondidas de si mesmas e só relutantes em aceitarem-se…

Magritte, Os amantes

Levantei-me e fui ter com ela à esplanada que em frente ao bar do hotel nos prendia a vista ao mar já bordado pelos reflexos de oiro branco do entardecer.
Há dias que sentia aquela atenção a palmilhar por ali o tédio dos finais de dia, quando aguardávamos que servissem o jantar, mantendo os dedos abraçados a uma cuba livre que alongava pela espera enquanto ela ia bebericando um gin diluído em fastio e água tónica.
Pedi para me sentar do outro lado da mesa baixa de palhinha e vidro e, já acomodado na poltrona forrada a lona branca, encarei-a tranquilamente, antes de encetar o inevitável e indispensável diálogo.
Que abordámos como conhecidos, embora nada mais nos ligasse ainda que aquela simples e recente troca de olhar, discreto mas crescentemente embrenhado no acicatar de um interesse tão mudo quanto eloquente.
Trocámos nomes, abordámos vagamente o que fazíamos durante o dia e titubeámos algumas frases e assuntos, na tentativa pouco empenhada de alargar o espectro oratório, mas pouco depois calámo-nos, amarrados a esse olhar cruzado e já sem escapatória.
E foi ainda nesse silêncio que me levantei para, contornando a mesinha, colocar as mãos atrás da cadeira dela, recuando-a quando se ergueu.
Atravessámos o átrio e nem mesmo no elevador, onde seguia outro casal, trocámos mais palavras, só o olhar periférico nos manteve cientes da presença um do outro.
Fui eu que carreguei no botão e por isso saímos no meu andar.
Algumas horas depois liguei para a cozinha a pedir um jantar tardio e era já de madrugada quando a senti deslizar do meu lado e começar a mover-se pelo quarto.
Na preguiça que me invadia deixei-me estar naquele limpo inerte e só vagamente distinto do sono pela consciência envolvente, enquanto pressentia os seus movimentos e ouvia um restolhar ligeiro de roupa, que só pararam quando o clic da porta a fechar, abafado pela antecâmara, devolveu ao quarto a exclusividade ruidosa do trânsito da Avenida.
Nessa mesma tarde vi-a chegar acompanhada ao hotel e sentaram-se perto de mim.
Mesmo sem esforço percebi na conversa que ele chegara nessa manhã e que iam ver no dia seguinte a casa para onde se iam mudar.
Lembro-me bem porque foi esse o dia em que um pedido meu admirou o barman:
- Outra, por favor.

terça-feira, 2 de agosto de 2011

Enfim

Nada me custa admiti-lo, muito menos dizê-lo, poesia é coisa dos outros, o que nunca me impedirão é de a ela me consentir.
Hoje, mulher, atrevi-me, por ti.
 
 
 
 
Enfim

Ontem,
quando passei por ti assim,
sem aragem,
corria um tempo mau e ruim,
uma voragem
que ensombrava o céu de mim,
mas selvagem
dei-te aquele beijo, quase de Caim,
numa vertigem,
e os cachos do teu cabelo de jasmim,
como uma nuvem,
libertaram-se e espalharam sobre mim
a tua coragem.
Anichei-me em ti e encontrei o sem fim.

A. Rodin

sexta-feira, 1 de julho de 2011

Relatividade




Passo todos os dias numa daquelas vias que se constroem para num futuro qualquer se tornarem formas de escoamento de um tráfego intenso ainda por descobrir.
Para já passam por lá meia dúzia de tipos atentos (como eu...) às alternativas rápidas de chegar depressa ao que tantos aceitam levar meio dia a alcançar...
A Avenida de dois sentidos dá a cada um três faixas largas e os cruzamentos são desnivelados, por passagens aéreas ou subterrâneas.
Por isso circular por ela era um regalo.
Até há uns tempos - e quase de certeza para alguém se abotoar com uma bela comissão - a encherem com irritantes sinais controladores da velocidade que disparam sempre que uma momentânea distracção nos atira para uns estonteantes cinquenta e um quilómetros/hora...
Já muito escaldado circulo nela particularmente atento e quando calha ver pelo retrovisor aproximar-se um paspalhão que ainda não percebeu que também por ali depressa e bem não há quem é hábitual a minha higiene mental preencher o tempo de castigo parado à espera do regresso do verde com impropérios destinados ao incauto, quando inevitavelmente acaba por se imobilizar ao meu lado, ou a mastigar em surdina considerações muito mais brandas no caso de ser uma dama...
Porque as mulheres e eu, enfim...
Bom, e nessas extrapolações de génio mal parado sobra-me sempre um mimo para a inteligência parda que se lembrou de ali pôr os ditos sinais e outro para quem os calibrou.
Porque a duração do vermelho, sobretudo quando disparado pelos raros peões que por ali se atrevem, é uma enormidade completamente injustificada.
Até ontem...
Quando fui de novo apanhado pelo vermelho sem ter prevaricado no pedal.
Não me foi pois difícil atribuir a culpa ao grupo de peões que no passeio junto ao malfadado botão aguardava pelo seu verde e senti-me logo a azedar...
Mas depois rendi-me.
O grupo era formado por oito jovens, todos portadores de deficiências não detectáveis ao primeiro olhar mas facilmente confirmadas por observação mais atenta, até pelo modo esforçado e descoordenado de se moverem.
E foi um daqueles momentos, com o estado de espírito em mutação súbita, acompanhar o atravessamento daqueles meninos, provavelmente de regresso à instituição que os junta e sociabiliza, orientada efusivamente pelo mais pequeno e ágil deles, que seguia à frente, sempre a agradecer-me, enquanto os outros, de mãos dadas, generosamente iam suprindo as dificuldades maiores dos parceiros.
E se aquela manifestação espontânea e colectiva de solidariedade era já em si mesma motivo enternecedor o gesto que me dirigiram no final da travessia deixou-me à beira das lágrimas.
Porque quando finalmente chegaram todos ao passeio oposto rodaram de modo a virarem-se para mim, apesar das suas diferentes insuficiências motoras, e assim se inclinaram e me dirigiram a vénia mais desengonçada a que já assisti, complementada depois com efusivos acenos das mãos finalmente largadas.
Há muito que o meu vermelho dera lugar ao verde, enquanto percebi finalmente a relatividade das durações daquele semáforo, e que um tempo que se me afigurou sempre morosidade exagerada e absurda constituía para eles afinal uma exigente brevidade, motivadora de enorme stress, receio e ansiedade.
E hoje, quando o semáforo me travou outra vez, já sorri.

segunda-feira, 20 de junho de 2011

A hóspede




Ir para África disposto a transformá-la num recurso paliativo para obter distancia do mundo reconhecido e de uma perda pessoal marcada ainda pela incompreensão e revolta, porque permanecia como cruel e injusta desforra de forças desconhecidas e hostis, pode conduzir-nos a processos vivenciais e psicológicos complicados.

A hóspede

Mas foi assim que fui dar a Luanda, após uma morte tão súbita e inesperada como inexplicável.
Larguei desajeitadamente o que tinha e, mentalmente bloqueado, parti simplesmente, aceitando as pancadinhas nas costas como incentivos de recuperação.
Um ano depois percebi a ingenuidade e voltei a pôr a solidariedade no sítio que a merece, um nicho de amigos muito restritos onde não cabem interesses materiais partilhados.
E como tinha nascido numa outra África, já extinta, em que a natureza ficava só à distância da curiosidade aventureira, também as ideias preconcebidas de poder vaguear a minha ânsia de liberdade e isolamento se desvaneceram nessa Luanda, onde entre o penoso e moroso ir e vir laboral sobrava só uma clausura forçada em hotéis e domínios residenciais protegidos pela presença constante das silhuetas vigilantes.
Meter-me no jipe e ir ao fim de semana até paragens distantes, ainda que ao abrigo da segurança proporcionada por um qualquer e esporádico resort de luxo, só era possível se me dispusesse a aceitar a integrar uma excursão mínima de dois jipes e a companhia de parceiros cujos apertos e labirintos de vida tinham também feito aportar aquelas paragens.
Mas fazê-lo não estava nos meus humores, porque o que ali me conduzira não se coadunava com pescarias colectivas e conversas generalistas sobre mulheres, pretos presunçosos ou carreiras que a acreditar neles não justificavam a sua presença naquele cenário tão vil e mercantilista.
Por isso foi crescendo em mim um ressentimento nascido de afinal não conseguir sequer tocar as condições básicas que me tinham feito romanticamente imaginar aquele como o lugar onde podia ir readquirindo anticorpos contra a o desalento e a amargura.
E á medida que o tempo passava a claustrofobia imposta foi-me tornando indiferente, cínico e revoltado com o meu engano e com tudo o que me rodeava.
Pelo meio ia-se esbatendo também uma certa coerência comportamental, que anteriormente gostava de erguer como mais-valia pessoal, porque a sentia, até pelo que via constantemente em redor, desenquadrada da lei da selva vigente, daquele salve-se quem puder e souber, numa sua acomodação livre a valores e modelos existenciais sem qualquer regras éticas e morais.
Porque naquela nova babilónia os vícios privados se tornavam progressivamente o único brinquedo que restava.
Vivia então numa House das irmãs de um ministro poderoso, que se permitiam escolher criteriosamente os hóspedes, e que na lotação plena andariam pela vintena.
O ambiente era sereno, bastante mais intimista e melhor que o dos melhores hotéis, sempre alvoroçado pela impessoalidade dos ocupantes em trânsito temporário e sôfrego de contactos e visibilidades, e curiosamente também o próprio serviço era muito mais personalizado, embora sem mordomias excessivas.
Mas ainda que houvesse rigor nos horários das refeições, sempre marcados por sobressaltos frequentes, porque desenvencilhar-se do trânsito anárquico e permanentemente engarrafado era também uma incógnita em termos de duração, sendo os restaurantes uma fraca alternativa, sobrava depois deste alvoroço diário um convívio mais calmo no pátio da House, entre o corpo da casa mãe e o dos quartos, onde era servido o café e finalmente se podia molengar aquele calor abafado e cansativo, ou até e com a contenção devida às proprietárias desentorpecer alguma má língua local.
Pátio que aos fins-de-semana se tornava quartel dos que não se deixavam seduzir pelas excursões mais longínquas nem pelo assalto balnear á ilha, onde os técnicos estrangeiros e os poderosos locais disputavam os restaurantes, também eles prevenidos de seguranças armados.
O centro comercial que depois se tornou numa nova variante destas limitadas alternativas era então ainda e só uma construção em curso.
E porque era impossível não criar laços com os poucos que como eu residiam em permanência na House foi-se estabelecendo entre nós um código e uma estranha solidariedade que nos distinguia dos que ali iam passavam esporadicamente, acolhidos pelas suas referências abonatórias, ou outros que de tempos a tempos reapareciam, técnicos de ONG´s, formadores, ou personagens ligadas à fiscalização e auditoria de algumas actividades de iniciativa estrangeira em Luanda.
Estes permanentes resumiam-se a três casais, curiosamente constituídos todos apenas por um elemento trabalhador - que num dos casos até era a mulher, o que como é óbvio destoava da generalidade – a um gestor bancário, uma formadora lusa ou angolana, conforme a sua conveniência decidia, e eu próprio, os únicos três que ali estavam sem enquadramento familiar, embora no caso do gestor, o Augusto, fosse casado e pai, e ela, a Graça, que se auto intitulava jocosamente como a presidente do povo, tivesse um namorado em Lisboa. Eu não me abria muito, mas era óbvio também que nada de importante deixara, até porque durante um período tive também comigo a minha outra filha.
Esse estatuto partilhado de únicos residentes livres acabou por nos dar um conhecimento mais subtil das orientações e preferências individuais, tal como uma certa solidariedade baseada na não agressão e por isso quando num certo domingo deparámos á chegada de uma ida à praia com uma nova hóspede, acabadinha de chegar entrámos os três em ebulição.
Porque ela era uma presa apetecível para todos, considerando as preferências que já reconhecíamos uns nos outros. Porque para além do Augusto e eu sermos claramente heteros – o que por aquelas paragens nem se pode considerar uma regra muito garantida – a Graça, por muito que propagandeasse o seu compromisso deixara-me progressivamente a convicção de ser bi, preferencialmente lésbica, e em qualquer dos casos definitivamente autoritária e dominadora.
Era uma mulher grande que por ter uma percentagem discreta de sangue negro disfarçava bem o facto de ser também um pouco cheia,  em que o mais assinalável era o seu feitio e exuberância, alternando das boas para  as más disposições sem transições nem motivos compreensíveis, falando com todos e fazendo dessa informalidade permanente uma porta para criar e personalizar conhecimentos com todos os que com ela se cruzavam.
Ele, o Augusto era bem apessoado e declaradamente peneirento, sendo provavelmente de todos aquele cujo charme mais saltava à primeira vista mas acabava por se apagar um pouco na paisagem dinâmica daquele ambiente fechado, quando a Graça e eu nos lançávamos numa desgarrada cativação verbal, cruzando temas e humores com que pretendíamos fixar a atenção da visitante.
E foi assim durante toda a quinzena em que a ela permaneceu em Luanda.
Em conjunto proporcionámos-lhe serões interessantíssimos, sempre abrilhantados pelas poses de galã do Augusto e pelas gargalhadas e opiniões cruzadas da Graça e minhas, e desdobrámo-nos a levá-la a todos os lugares que podiam caber numa estadia tão breve, desde as melhores vistas, os melhores restaurantes, as melhores praias da ilha e até uma excursão a Cabo Ledo, com paragens em todos os lugares cativantes e apelativos à sua máquina e câmara.
Após o café da noite os serões prolongaram-se insolitamente com os quatro presentes muito para além do que ali era ali praticamente tido e respeitado como hora do recolher, o mais tardar um pouco além das vinte e duas, e o fumar dos últimos cigarros, que nos tirava aos quatro dos quartos onde tal era rigorosamente proibido, chegava a suceder perto da uma da manhã.
A cativante intrusa, embora denotasse discreta consciência da atracção que provocava conseguia contudo manter e aparentar uma perfeita equidistância relativamente aos seus três admiradores confessos, sem nunca demonstrar qualquer preferência ou preterência.
Além de ter sido rápida e elogiosamente alcunhada também pelos os empregados da casa como Miss House, tal o corrupio de desvelos e atenções que em todos despertava.
Era uma mulher particularmente elegante e harmoniosa de corpo e feições, de conduta e posturas irrepreensíveis e discretas, formadora de relações públicas, mas o que mais me cativava nela era a sua atitude tranquila, cândida, graciosa e simultaneamente atenta a todos e a tudo.
E após o regalo final do passeio a Cabo Ledo, que todos reclamámos inequivocamente como fruto da iniciativa pessoal aproveitada pelos outros dois, no regresso levámo-la a jantar ao lugar mais elegante e selecto de Luanda.
De volta à House despedimo-nos pesarosa e já saudosos daquele tempo agitado pela boa surpresa que constituíra a sua presença, pois partia na madrugada seguinte, a horas tão impróprias que nem mesmo o mais cavalheiresco empenho nos faria deixar de delegar no chauffer da casa a obrigação de a levar ao aeroporto.
E nos dias seguintes embrenhámo-nos todos nas obrigações desleixadas pela prioridade com que acorrêramos a preencher a estadia da nossa amiga com atenções acumuladas, quase não nos cruzando na House, pois também aí chegados logo desaparecíamos apressadamente nos quartos.
Mas finalmente encontrámo-nos os três no pátio alguns sábados depois, após um pequeno-almoço menos apressado, decidindo pouco depois partilhar o dia que se oferecia radioso em refrescantes banhos na ilha.
Já ao findar dele e no regresso parámos para comer qualquer coisa no Clube Naval e foi aí que conversámos pela primeira vez sobre a ausente.
Lenta e envergonhadamente confessámos um a um que perdêramos o hábito do convívio ao café e fim-de-semana porque ultimamente dedicáramos as horas livres quase exclusivamente ao correio, ao Skype e ao Messenger.
Depois de alguns silêncios embaraçosos um de nós acabou por confidenciar que tal se devia a longas e diárias conversas com a nossa amiga comum, e após alguma desorientação colectiva, os outros acabaram por admitir como seu motivo de afastamento razões rigorosamente coincidentes…
E cada um terá deduzido também a razão porque durante a sua estadia dormira sozinho apenas duas em cada três noites...

quinta-feira, 19 de maio de 2011

Foi ali




Senti o espírito tão entorpecido como encantado e evitei olhar-te de frente, temeroso de assim denunciar o quanto estava estupefacto, estarrecido e simultaneamente embevecido.
Nunca acreditara que existias mas reconheço que não tentara sequer criar-te no imaginário, quanto mais procurar-te no mundo real.
E no entanto ali estavas, a olhar-me também de soslaio, com um sorriso que ainda não me atrevia a descodificar, de ombro encostado ao meu como se nos conhecêssemos de sempre, enquanto apoiava no balcão a tontura provocada pelo teu aparecimento.
Apesar de ter voado milhares de milhas para corresponder às trinta que tu deixaras para trás e depois do compasso de uma semana de hesitação, preenchida em disparates somados só para disfarçar e acalmar essa ânsia de correr para ti.
Porque se sobrepunham sobreavisos contraditórios, encorajamentos sobre ti, que podias ser o que não podia existir, e um coro de troça a desmenti-los.
Esses disparates, soube-o logo, mais não eram que cobardias a desviarem-me de um mergulho no ridículo  dessa crença súbita de poder materializar o impossível, cedendo ao impulso que pressentia também não ter retorno nem recuperação.
Se um dia me voltares a olhar saberás que não, que abriste, materializaste e encerraste uma fantasia impossível apenas por existires e te teres mostrado.
Não sabia nem sei ainda hoje definir porque ao fim de tantos anos senti que tinha chegado ao meu destino mas contudo essa era a única certeza que se me impunha naquele estado de total prostração racional e perplexidade emocional.
Porque o prenunciáramos até, a partir do momento em que a resposta à tua provocação ficou presa na percepção confusa que iria despoletar o caos absoluto em tudo o que era, conhecia e desejava, lançando-me num abismo desconhecido e insuspeito.
E que depois, contrariando todos esses alarmes que bradavam ao meu bom senso, se escapuliu repentina e descaradamente, incendiando duas vidas que dormiam na convicção de estarem onde queriam.

Pouco importa agora remoer inseguranças e apontar maldosas coincidências ou obrigar-me a enterrar num esquecimento forçado tudo o que a partir daí resvalou para a mediocridade e cobriu esse clarão de utopia que me atingiu e cegou, porque agora sei que foi ali que o céu se abriu e me sorriu.


segunda-feira, 16 de maio de 2011

INCPP



Ou um espírito gaiteiro que não resiste...

INCPP - Inovação e Criação de Novos Produtos Portugueses

Procuram-se meninas patrióticas.

Se é Portuguesa, jovem, patriótica e disposta a servir o seu país tem aqui a oportunidade que procura.

Exige-se:
- Discrição e sigilo absolutos.
- Boa aparência física e sexapeal.
- disponibilidade total e domínio das técnicas de indução de acessibilidades a figurões da economia e política internacional.
- Estofo para servir, comer e calar, em nome da redução da Dívida Portuguesa.

Oferece-se:
- Farda apelativa, tipo camareira, recepcionista, tradutora, guia turística, massagista, fisioterapeuta, médica, enfermeira, bombeira, polícia, mecânica, caixa de supermercado, empregada de mesa, balcão, franchising, shopping, etc..
- aparições públicas na companhia de J. Sócrates, P. Coelho e P.Portas (reconhecido o desinteresse deste pelo sector oferece-se em alternativa integração na entourage do S. Lopes)*
- Inclusão bem remunerada, vitalícia, livre de cobrança fiscal e presença em Comissão Estatal sem função no próximo elenco governativo, já devidamente negociada e aceite pela troika.
- Smart fortwo ( Ald renovável de 4 em 4 anos, em cores alternadas laranja e rosa).
- Inclusão central no poster gigante do Natal de 2011 da revista Playboy Portuguesa

* Havendo orientação sexual alternativa garante-se a plena e discreta satisfação da mesma.

Respostas:
Por sms com número identificado para o telemóvel 941230069
Receberá resposta pela mesma via, a marcar a data, hora e local onde se apresentar para avaliação prévia e selecção do grupo de finalistas a sujeitar posteriormente à decisão final do FMI.

Diogo Metro e Tugasalino
Presidente do Conselho de Administração do ICNPP

terça-feira, 10 de maio de 2011

Entre Paraísos





Entre paraísos

Refeita a mochila metera-me de novo ao caminho, ansioso por deixar na cidade a ilusão alimentada que a passagem nos dias anteriores pelo paraíso com a Isa poderia ter continuidade ali.
Essa convicção fora criada a partir do momento em que ela se juntara inesperadamente à fogueira com que tornava aquela noite húmida mais acolhedora, só povoada pelo rugir bravio do mar, escancarada ao infinito de um manto azul escuro estrelado e também à poderosa afirmação de autonomia que me marcou o final da adolescência.
Viera em magote juvenil, próprio das férias grandes, mas rapidamente me cansara do seu corrupio constante, entre as catembes no bar do parque de campismo, onde alternativa ou acumulativamente alguns seduziam estonteantes bifas da Cidade do Cabo para uma mal speakada marmelada continuada na discoteca do hotel.
E refugiara-me ali, acendendo aquele lume discreto e afastado do balbucio habitual, talvez porque fora dos primeiros a vir, nos anos anteriores, e já tinha percorrido aqueles mesmos desígnios mundanos.
O aparecimento da Isa fora nesse quadro de isolamento procurado um acontecimento totalmente diferente e logo destrinçado da habitual prioridade flirtista.
Primeiro porque era conhecida e não uma anónima e ocasional estrangeira, estas tão prontas como nós à aventura sazonal e descartável, de avanço definitivamente imprevisível, porque havia as que a seguiam até ao fim e outras que esporadicamente retrocediam para o abrigo desaconselhável das roulotes dos seus enormes e toldados papas.
E também porque tinha dela a ideia de marrona do liceu, muito metida com as suas matemáticas, embora reconhecesse desperdício nessa exclusividade pois já lhe detectara anteriormente a figura atraente e o que então confirmei, que era culta, versátil, espirituosa, e quando queria conversadora e companhia cativante.
E por isso naquela noite e nas duas que se seguiram construímos de forma entusiasmada e aparentemente mútua uma interacção empolgante, com um ou outro beijo de permeio, mas sem grande fixação nessa esfera, até por sermos ali claramente os que a tinham repudiado.
Quando ela se despediu, pois regressava com os pais para a cidade, pareceu-me inteligente fazer o mesmo, para nesse regresso à normalidade vivencial perceber se a empatia nascida fora mero episódio de companhia casual ou se resistiria ás diferenças dos mundos em que por lá nos movíamos.
Porque definitivamente eu não circulava entre os caixas-de-óculos que habitualmente a rodeavam nem ela parecia compatível e interessada nas tropelias mundanas em que usualmente me integrava.
E quando depois de um regresso pitoresco e desesperantemente lento, percorrido no maxibombo e ferryboat obrigatórios, a procurei no club de mini golfe, foi a decepção que encontrei. Nem ela parecia disponível para abandonar o seu grupo de totós desjeitados e presuncosamente intelectuais nem consegui resistir ao segundo pleno de buracos, o que para além do mais me tornou ali também odioso.

De regresso à Ponta do Ouro, praia-paraíso selvagem na extremidade mais Sul de Moçambique - a que o meu pai acrescentara uma das primeiras casas de férias e que durante aquelas disponibilizei aos companheiros apesar de só lá ir tirar o sal - apoderei-me durante o tórrido dia da sombra formada por um curioso triângulo de três pequenas arvores que tinham nascido avançadas no areal da praia, implantado um pouco a Norte do hotel.
Ali me refastelava então indolentemente durante o pico do calor, que era praticamente toda a fase diurna, privatizando aquela formação vegetal e beneficiando da sua insólita frescura, embora de vez em vez atravessasse o areal e desafiasse a furiosa rebentação, passando depois meia hora protegido dela e na crista do ondular forte e vivo e de um Índico ocasionalmente visitado por tubarões.

Tinha passado pelas brasas um tempo indeterminado e estava ainda a reagrupar preguiças para ir comer qualquer coisa ao hotel, afastado dali pouco mais de cem metros quando ao meu lado um sussurro feminino me trouxe palavras inglesas.
Olhei, ainda meio estremunhado e vi aquela que era, desde o início dessa temporada balnear, o motivo de todas as conversas e cobiças babadas do grupinho que acompanhara.
Era a mulher mais deslumbrante que estes olhos que a terra há-de comer tinham visto até então.
E sabia até, pela bisbilhotice fervilhante dos dois lugares onde obrigatoriamente me podia alimentar, que era a figura principal de um filme estrangeiro que estava a ser parcialmente rodado ali.
Já a vira na primeira noite, em que dera uma saltada à discoteca, quando entrara acompanhada pelo séquito das filmagens e muito em particular por um galã que fizera em contraponto com ela as delícias do mundo feminino presente.
Embora já tivesse percebido então que as mulheres usam um código nem sempre coincidente com o meu sobre a beleza masculina não me fora difícil detectar no espécime todos os atributos necessários a uma preferência generalizada no sector, já que se tratava de um homem muito alto e elegante cuja cuidada e basta cabeleira loira, tão clara quanto o aguado dos olhos azuis, enquadrava feições perfeitas e harmoniosas.
A mulher que tal como ele andaria pelo meio da casa dos vinte era a correspondência perfeita para prender a atenção masculina tradicional, embora de tipologia e morfologia físicas totalmente contrastantes.
Tinha um corpo escultural, proporcionado e mediano que revelava a sua origem latina, culminado na farta e brilhante cabeleira que valorizava um desenho facial perfeito e exótico, acrescentado pelo contraste e vivacidade de expressões que tornavam difícil afastar os olhos dela, pois conseguia transmitir alternadamente um completo alheamento à envolvente e uma escaldante atenção focada.
Para além disso distinguiam-se ambos por se movimentarem de forma coordenada e langorosa, como se fossem guiados por um ritmo exclusivo e inacessível aos demais, abrindo nesse seu deambular autista pela pista uma clareira espontânea entre a multidão, rendida à contemplação daquele centro incontornável de todas as atenções.
Deles guardei nessa visão a ideia de um par perfeito e romântico, antes de me retirar para o viver eremita que elegera como forma de atravessar essas férias.
Era pois ela, a mulher-deusa do cinema longínquo, quem se abrigara também no meu refúgio do calor diurno durante a minha sonolência e se me dirigia, confortável e paralelamente deitada a menos de um metro do meu corpo.

Passámos lá a tarde, numa tagarelice e mímicas divertidas e animadas, alternando o inglês, quando este me era insuficiente, com um italiano absorvido do neo-realismo cinéfilo e um gesticular de larga liberdade e amplitude.
Diálogo que levámos nas passeatas à beira-mar para colhermos dela salpicos de frescura e que teve o imediato condão de apagar da minha mente a Isa e o desencanto trazido.
Que simultânea e inevitavelmente inflamou também a curiosidade e a palermice dos meus pares de férias, o que não menos obviamente me reforçou o orgulho afirmativo, pois já notara comentários trocistas dirigidos ao alheamento social que adoptara.
Nessa noite veio mesmo buscar-me ao triângulo para me juntar ao seu grupo na discoteca, apresentando-me a todos e dançando exclusivamente comigo.
O seu belo companheiro foi também de uma delicadeza e simpatias insuperáveis para comigo o que, para além de me confortar, esboçava interrogações que contudo não me atrevi a intrepertar e explorar de imediato.

Já de madrugada despedi-me dela com grande emoção, pois sentia que o simples facto de me ter dedicado a sua preferência era já em si mesmo prémio para a nascente convicção que iria no futuro reforçar a minha independência e definitivamente orientar-me por decisões pessoais e não pelo pensar e agir socialmente alinhado e abrangente.
Já com todo o grupo instalado no autocarro ela manteve-se junto a mim numa despedida marcada pela intensidade dos olhares e foi então que me disse que iriam permanecer dois dias na capital para rodarem curtas passagens do filme.
E que teria pena de não ter lá a minha companhia.

Esta declaração inesperada deixou-me sem pinga de sangue, pois percebi que até então me obrigara a interpretar a atenção dela como mero capricho de fastio, sem acesso a outro desenvolvimento, o que agora subitamente se revelava um erro de leitura imperdoável.
Mas num último arremesso de coragem perguntei-lhe directamente se ela não namorava o seu atraente colega.
Ela olhou-me, virou-se para as janelas do autocarro e apontando para uma delas, onde vi um dos elementos do grupo, respondeu-me:
- Não, o namorado é ele…
Fiquei por momentos confuso e perdido no raciocínio mas observando melhor e vi também pela primeira vez a forma como o ocupante do vidro fixava o galã sentado ao seu lado, e acendeu-se finalmente a luz que até aí faltara ao meu espírito, compreendendo que não se referia a si mesma...
Ela também o notou e sem falar transmitiu-mo por uma expressão simultaneamente divertida e trocista.
Recuperando a agilidade mental perguntei, naquele dialecto que inventáramos e já com ela a subir os degraus, se à hora de partirem, na manhã seguinte, não haveria lugar para mais um...
- ...nem que seja lá atrás, em pé na coxia ou mesmo na bagageira, junto às malas?...
E foi com nova expressão, esta enigmaticamente distante, lançada já sobre o ombro, que me esclareceu que o tinha já reservado, ao seu lado.


quarta-feira, 4 de maio de 2011

Uma improvável coincidência


- para maiores de (mental)idade-


Era a nossa segunda noite e aos repetidos estados eufóricos seguiam-se amaldiçoados mas indispensáveis intervalos.
Porque não fomos feitos da mesma massa, digam o que disserem os filósofos e os cientistas.
E aquela mulher soltava-me ininterruptamente a tampa, não deixava esmorecer as labaredas que incendiara no meu desejo e por isso me incomodavam as pausas incontornáveis à minha natureza de homem.
Não era bela nem sequer se denunciara anteriormente o apelo que transmitira à minha libido assim que mergulhara no perfume do seu encanto.
Há quem lhe chame química, a mim parecia-me loucura pura e intraduzível por um qualquer conceito já acontecido.
E contudo fora muito sereno e mesmo indolente o seu despertar, talvez pela minha percepção não ter desconfiado do que se prometia.
Ela tinha uma particularidade física que obviamente teria sido sempre o chamariz de atenções anteriormente colhidas e que por tal considerei dever poupar e até evitar: umas mamas lindas e firmes, cheias e pontiagudas, até proporcionalmente exageradas face à elegância do corpo.
E por isso também a minha abordagem as contornara, sendo particularmente discreto, e também suave e meigo no seu breve acariciar.
Mas curiosamente essa predisposição e contenção em nada afectou o deslumbramento que despertou em mim aquele mergulho quase ébrio no seu corpo quente e na sua forma de dar e receber sensível e sensualmente intensa.
E assim percorrêramos já uma mão cheia de empolgamentos e êxtases, cada um deles multiplicados muito para além do imaginado.
E ela não tinha forma de os acrescentar ou simular, pois manifestavam-se de forma inequívoca.
Porque há mulheres que sofrem dessa (in)conveniência masculina.
Por isso naquela pausa de guerreiros nunca saciados me surpreendeu ouvi-la perguntar porque sendo tão minucioso e paciente – quase tortuoso – na estimulação de tantos dos seus lugares de prazer desleixara, de forma tão evidente, as mamas.
Disse-lhe o porquê, ela riu-se e abraçando-me retorquiu:
- Meu querido... é bem verdade parte do que pensaste, mas escapou-te a possibilidade de haver uma improvável coincidência: a de eu adorar o que elas provocam...


PS - Dedicado ao recordar de uma mensagem sambista que, tal como Chagall, coloriu um dia cinzento... mas nem tanto moralista. :)