terça-feira, 29 de março de 2011

O desconforto moral


Manet

O desconforto moral

Estabeleci-o, ou antes, conheci-o no final da minha adolescência abanada pelo 25 de Abril.
Estava ainda em Moçambique, adiando a partida para uma faculdade de Lisboa.
Curiosamente perspectivava de forma quase natural e subconsciente que após a minha formação académica voltaria para lá, pois tinha já então consciência plena do tipo de qualidade de vida que procurava, que não se esgotava em formas comuns de materialidade e sucesso sócio económico.
E como crescera naquelas paragens, mas com férias passadas na Metrópole, reconhecia pela comparação dos tipos de vida e sem equívocos que os níveis de liberdade e interligação à humanidade e natureza que me atraíam estavam todos ali e não nos lugares visitados, como pudera testemunhar progressivamente.
Por isso a inevitabilidade de uma partida agora sem regresso provável me fazia então adiá-la, recorrendo a uma cadeira para a atrasar...
Namorava também a Concha, que tinha entretanto viajado para Lisboa pois estava iminente o nascimento da sua sexta irmã, num desfasamento ao seu de quase duas décadas.
E por isso preenchi a sua ausência com o regresso aos lugares da Polana que tinha deixado de frequentar após o início do namoro com ela e que eram afinal os mais apetecíveis e mundanos da cidade: o Sheick, o Hotel Polana e no adiantar na noite alguns outros mais distantes para onde nos empurrava a vontade fútil de a prolongar e animar.
E uma tarde no grande foyer do Hotel, onde era comum os frequentadores mais assíduos dessas noites se entrelaçarem socialmente com a restante população burguesa menos dada à assiduidade noctívaga, encontrei a Sara.
Era uma jovem um pouco mais velha, namorada do Picas, meu colega e amigo do liceu, que decidira ir ao Brasil tentar aceder a uma determinada universidade.
Ela tinha uma imagem mais adulta que a maioria de nós, naquele seu corpo torneado e miudinho e nas feições muito atraentes, enquadradas pelo cabelo negro de azeviche e a pele branca em que sobressaíam uns olhos com o dom de prometer mistérios e apelar particularmente às minhas fantasias eróticas.
Era aliás uma atracção antiga e nunca esclarecida que se tornara obsoleta e ultrapassada no momento em que a soube namorada oficial do Picas.
Mas naquele quadro de dois comprometidos insolventes pareceu-me inocente procurar na sua companhia o convívio sereno e paliativo para as ausências mútuas.
A mente humana, sobretudo nessa fase já adulta mas ainda pouco madura, prega-nos destas partidas e foi de facto atrás deste justificativo que decidi preferir o seu convívio nos dias seguintes à constatação desta coincidente ausência de parceiros.
Assim foi com naturalidade que a comecei a acompanhar até à casa próxima, num passeio que alongávamos pelo miradouro e a ficar sentado à sua porta, numa conversa que nunca ganhou empolgamentos ou empatia assinaláveis mas que me sabia bem porque encurtava o dia, já que me determinara a não enveredar pelo corrupio noctívago, que sabia ao que levaria.
E num dos princípios de noite seguintes, que nos encontrou ainda no mesmo degrau, surgiu inesperadamente uma daquelas cargas de água tropicais que deixam tudo e todos ensopados num minuto, pelo que pareceu natural entrar para me secar.
Como não nos secámos apenas nos dias seguintes o encontro iniciado sempre no foyer do hotel ao final de tarde foi sendo progressivamente abreviado e prolongado depois em casa dela, até por ter também os pais – que nunca conheci - para a Metrópole.
Nesse período nunca houve qualquer referência aos ausentes, tornados tabu por omissão, por isso quando algum tempo depois entrei ao final da tarde no hotel e vi o Picas sentado ao seu lado não sabia se o seu regresso fora inesperado ou consoante o previsto.

Especado debaixo do enorme vão da entrada fui assolado por um conjunto de emoções contraditórias e desconfortáveis.
Os motivos dessa desorientação eram vários e nada abonatórios mas o que mais me surpreendia era ser o recém chegado a surgir na minha mente como o amigo ali presente.
Reconhecia assim de chofre e num momento de surpresa e mal estar que aquele tempo partilhado com ela, muito para além do que tinha inicialmente previsto e hipocritamente negado desejar, não me abrira afinal uma frente de interesse, paixão, ternura ou mesmo amizade colorida particularmente fortes por ela.
E percebi pela primeira vez que por vezes são as nossas carências, solidões e egocentrismos que gerem e determinam as escolhas pontuais e oportunas que decidimos.
Procurando nelas só respostas e emoções provisórias e de substituição que não resultam afinal de uma força interior e atracção reais, alimentadas pelo interesse, pela paixão e menos ainda por esse conceito complexo em que acolhemos os autênticos anseios, intuitos, sentimentos e desejos e a que chamamos genericamente amor por alguém.
A escolha foi imediata e aproximei-me dele para o abraço que recuperara já a certeza da alegria que manifestava.
Evitei sempre uma conversa a dois com a Sara depois deste episódio, ela também não fez disso uma questão inultrapassável e por isso a partir daí carreguei provavelmente sozinho o mal estar que senti perante a Concha ou quando calhava ver um deles.

Mas julgo que foi nele que adquiri este desconforto perante situações ambíguas e equívocas, evitando participar nelas, no que nem sempre fui bem sucedido, reconheço.
Mas não por premeditação da minha parte.
Porque sempre que percebi estar afinal envolvido me afastei radicalmente de cena.

O que não obstou a alguns momentos de grande desencanto, mágoa e sofrimento.

Hotal Polana

quarta-feira, 23 de março de 2011

É a Claudia

A última forma guardada de uma saudade.
Memória também extensiva à Cláudia, a ex-mulher e sempre mãe que foi definitivamente a amiga.







- É a Cláudia

Saíramos de lá dois dias antes angustiados e derrotados, o Armando e eu, sem termos passado do átrio da entrada,
E imaginá-lo simplesmente incapaz de repescar num recanto qualquer do seu íntimo - que sempre fora inesgotavelmente positivo e resistente – um assomo de energia e ânimo para nos aturar, quando sempre os descobrira até onde nada os indiciava, foi o enfrentar da inevitabilidade de uma capitulação que ele e todos nós tentávamos ainda ignorar, desmentir e mascarar.
Porque se havia alguém a quem fazia sentido atribuirmos essa capacidade de contrariar o destino era ele.

Agora voltara, com a Nené e a João, e apesar da fragilidade e magreza extremas apetecia-nos de novo ultrapassar a evidência e voltar a crer que era ele o tal herói.
A certa altura, vendo-o puxar de um cigarro, até me atrevi a gracejar:
- Vá, fazes bem, faz isso que te faz bem...
Mas quando o olhar dele me chegou, depois de uma subida lenta e perra, não precisei de ouvir nas palavras que o acompanharam o anúncio de uma guerra finda:
- Fumo e fumarei enquanto puder todos os que me apetecer e ninguém tem nada a ver com isso!
E naquela exclusiva ausência do seu peculiar sentido de humor, substituída por uma teimosia dorida, terminal e já indiferente à elegância que sempre o caracterizou, se desfez a minha negação.
Mas foi bom, falámos dos velhos tempos, de LM, da Polana, do Sheick, dos gelados, das motas, das barreiras e do Liceu, das tropelias e dos namoricos, descobrindo até e surpreendentemente que entre nós quatro nunca tinham sucedido, o que era raro dado termos sido todos algo namoradeiros, tirando um ou outro mistério, como o de uns dez minutos que ficaram no ar e o relembrar de uma aparentemente insondável pergunta da Nené antes de se fixar no seu (outro) António...
Tagarelámos, recordámos, até rimos, alheados da envolvente da sala, para onde tinham recuado os filhos, os irmãos e a jovem a quem interromperamos a recolha de memórias, distanciando-se discreta e emocionadamente da partilha de outras no último e inevitável estar daqueles velhos amigos.

Após a despedida e a saída foi pior. Chegámos ainda atarantados lá a baixo e ficámos parados no passeio, mergulhados num tempo e numa ansiedade de soltar o que trazíamos acumulado nas almas.
Emoções tristes que a Nené e eu metemos no carro, mesmo depois da João seguir no dela, e com que atravessámos uma cidade que parecia esbatida e descolorida, quase desconhecida.
Deixei-a em Algés, junto ao carro e segui, depois de repetirmos que voltaríamos breve, deixando só decorrer o tempo mínimo que o protegesse da transparência da motivação tão óbvia para um regresso demasiado próximo.
Julgo que sentimos todos que já não haveria tempo mas ainda assim impôs-se aquele cuidadoso compasso, benévola e tonta hipocrisia herdada do que sempre vimos fazer desde miúdos: nunca deixar transparecer o temor de ser a última vez.
Porque nessas alturas as palavras se divorciam ainda mais da sinceridade num pudor patético que se impõe, por mais íntimos e cúmplices que sejamos e apesar da vontade de usufruir de cada gota de um fio de historia comum que se esgota.

Quatro dias depois, já perto da meia noite e ainda meio desorientado com as vias de entrada em Madrid o telemóvel tocou.
Agarrado ao volante e já com o mau pressentimento pedi para ver quem era.
E a resposta confirmou-o:
- É a Cláudia.

sábado, 12 de março de 2011

Ai estas mulheres!



Picasso

Ai estas mulheres!

Descobri que rir de mim é boa terapia. Por isso estes contos são pedaços soltos de vivências - reais ou simplesmente testemunhadas - emaranhados em ficções acrescentadas, muitas vezes roçando uma visão ridícula do meu sentir masculino em que, dê para onde der, o fulcro é sempre a mulher.
Porque as mulheres se apossaram há muito das minhas emoções, sentimentos, curiosidade e até criatividade.
Gosto delas, pronto.
Como seres, como amigas, como amantes e sobretudo como inspiração única de um desafio que me impus e sei que nunca passará de uma quimera: percebê-las nesse amor que lhes devoto.
Elas gostam de dizer que os homens nunca as perceberão, bem sei, mas talvez por isso esta minha fixação em as contrariar desafiando-as e amando-as.

Claro que não sou altruísta, sei muito bem o que busco nelas.
Aliás não confio em nada nem ninguém que se promova a benfeitoria alheia, por isso as mulheres que menos me atraem são as boazinhas, as santinhas, as devotadas a uma causa, chamem-lhe religião, matrimónio, maternidade ou até paixão.
Porque me atraem as outras, as vivas, as "ego-ístas", as complexas, as desassossegadas, as instáveis, as conflituosas, até as matreiras e bipolares.
As que trazem dentro delas incertezas éticas e dúvidas morais, essa riqueza existencial nascida da inteligência e consciência que nem tudo é preto ou branco, bem ou mal, moral ou imoral, bonito ou feio.
E este sonho que acalento é porventura idiota mas nem por isso menos sedutor e irresistível: descobrir uma que atraindo-me com a força da sua natureza me abra simultaneamente o seu mundo íntimo- aquele que todas declaram incompreensível ao sexo oposto – por permuta não só com idêntico acesso ao meu como também pela estipulação entre nós de uma tolerância sem limites.
Será precário, permanentemente provisório, difícil e facilmente perecível? Não sei nem isso é importante porque essa é provavelmente a maior incógnita desse mesmo desafio de acreditar e investir num amor, numa amizade e numa paixão que durem exactamente o tempo que os justifique.
Terá escolhos dolorosos, rombos dramáticos e difíceis de ultrapassar? Claro, mas não é disso que vivem os nossos silêncios, os nossos alheamentos e sobretudo o nosso isolamento mental e endurecimento emocional, que gostamos de confundir com o amadurecimento ou a dura realidade existencial das relações? É sim.
Por isso sonhei que abrir essa comporta da intimidade entre dois seres, já separados por tanta coisa para além do sexo, seria como viver na crista da onda de um tsunami, uma experiência única, explosiva, alternadamente dramática ou épica, ondulada pela autenticidade mútua, e sobretudo capaz de alagar e inflamar essa atenção que tende preferencialmente para descobrir fastio no que se torna garantido, seguro e aparentemente conhecido.
Porque o que trai todos os relacionamentos continuados é o esmorecimento progressivo dessa atenção, enquanto a vamos substituindo por certezas sobre o que nos é transmitido pelos sinais, comportamentos e sensibilidades emitidos, que julgamos progressivamente ser capazes de descodificar e sistematizar.
Mas não somos porque as mulheres – e até prova em contrário os homens também, embora de uma forma diferente - são mutantes, evoluem, modificam-se, na medida inversa em que lhes vai sobrando essa atenção que se desvia do parceiro "decorado".
E quando a tentamos simplificar e tipificar, chamando-lhe cansaço, fixação profissional, alienação paternal ou outra qualquer designação estereotipada, estamos apenas a roçar numa das formas de mistificação mais visível, prática e comodamente cobarde que essa mesma atenção assume, escondendo todos os outros focos que a vão prendendo ao longo dessa desaceleração afectiva e passional pelo parceiro.
Porque esses chavões e comportamentos tipificados não esgotam essa atenção excedentária, apenas tranquilizam a preguiça mental em esmiuçar uma intimidade que se vai encolhendo sem revelar a multiplicidade de substituições que sigilosamente a prendem, mesmo num dia-a-dia aparentemente preenchido por essa justificação genérica.
E é por isso que estranhamente acolhi esta quimera de um dia desencantar uma mulher assim, capaz de me dizer um dia que não me abraça porque está encantada com outro ser, a mesma a quem poderei noutra fase confidenciar que gostando muito dela me sinto incapaz de a amar apaixonadamente porque me sinto fascinado por alguém.
Que será duro, doloroso e até difícil de assimilar não tenho dúvida mas tenho-a igualmente que será verdadeiro e dará a ambos oportunidade de, nesses dias, não sermos despropositados, ridículos ou até dignos de um dó que vicia e desgasta as probabilidades de retoma.
E poderemos também reagir concientemente a conjunturas e realidades avessas mas honestamente partilhadas, mesmo que perceba quanto difícil deve ser aceitar o reconhecimento de sermos ali e então o elo fraco, o pendura, dependendo então do bom senso próprio, da capacidade de encaixe e contenção, da criatividade e recurso a meios de cativação inovadores para lutar pelo reacendimento de um interesse desviado de nós.
Além de obviamente um deslumbramento casual e esporádico não significar à partida a sua repentista e caprichosa aquisição.
Passando sobre a quase grosseria da comparação encaro o reconhecimento desses fascínios que nos atravessam como o ocioso deambular com tempo e dinheiro pelas montras de um desses palácios do consumismo.
E há nele uma enorme diferença entre o vulgar e imediato apelo à nossa vontade de possuir e a sua cabimentação real porque existe, para além desse  poder ter a sua conciliação com as necessidades, prioridades, aferição da qualidade e, vá lá, até com o bom senso e reconhecimento de haver em nós um espaço carente ou já ocupado.
Porque neste meu sonho há dois espaços que se cruzam sem se confundirem. Negar tal é e será sempre a maior falácia dos relacionamentos a dois.
Reconhecer, conservar e respeitar o espaço individual - que para muitos é a negação hipócrita desse laço a dois – nunca poderá ser indissociável da construção saudável de uma existência partilhada. Mas ter acesso a ele permite uma resposta e uma reacção justa, que é o que não é comum nos relacionamentos mudos e calados aos empolgamentos individuais. 

E se não formos capazes de reacender a atenção real, escusamos ao menos de a simular recuperar e mascarar com um desses chavões tão comuns entre casais humanos.
Porque teremos simplesmente encontrado o fim de uma relação no momento em que findou a sua razão de ser, contrariamente ao que é também comum.

    Matisse

Até lá… vou sendo como me conhecem os que comigo se cruzaram, autêntico, frontal  e sempre que possível delicado, com esta tendência para falar da intimidade no plural, até meigo e capaz de partilhar momentos altos, de me solidarizar e emocionar com o que me toca, de reagir e mesmo irritar, de me rir de mim e com os outros, de me enamorar sem prometer nem mentir, e de desaparecer quando este meu feitio se torna azedo, tristonho ou macambúzio.
Porque ninguém precisa de mim para a partilha desses desânimos. Nem eu…

sexta-feira, 11 de março de 2011

Um dia de cada vez



Pintura de Hokusai (sec. XIX)

Um dia de cada vez…

(da formiguinha irritada com as cigarras)

Às vezes quase toco num mundo que não entendo mas, viscoso e escorregadio, ele rejeita o meu tacto ansioso de amizade, sobretudo de compreensão, e volto a embrenhar-me neste cantinho de solidão existencial e teimosia ignorante.
Mas volto a tentar, uma e outra vez, sem nunca desanimar ou desfalecer, embora sabendo que se não me deu até agora a qualquer veleidade de o tocar dificilmente mo permitirá a cada futura e nova tentativa.
E é estranho porque de tanto me ver tentar aproximar já devíamos ser pelo menos velhos conhecidos, embora suspeite que nunca vá sequer corresponder com um insignificante e quase imperceptível aceno ao meu denodo em lhe provocar esse pequeno e vago gesto de reconhecimento.

Hoje o Japão tremeu e quase se afogou, morreram e sofrem milhares difíceis ainda de contabilizar, podem até alguns que se regem por ideários religiosos, políticos ou até culturais diferentes nos nipónicos pensar que foi bem feita, fazendo eles parte de uma realidade tão longínqua e aparentemente incompreensível.
Para mim são tal qual nós, gentinha boa e má, cada um com um pouco das coisas que metemos dentro desses dois adjectivos tão vagos e genéricos, insignificantes, diversificadas e incontáveis formiguinhas de uma multiplicidade humana e cósmica a quem calhou morar nesta esfera imperfeita a que chamamos (a nossa) Terra.
Amanhã não sei o que vai acontecer, mas algo se há-de arranjar, aparece sempre algum acontecimento inesperado com a capacidade de nos fazer abanar as desgastadas emoções que já deviam estar empedernidas há muito mas que teimam ainda em se escapulir sorrateiramente do baú poeirento da nossa esperança.
E, garantidamente, vou voltar a tentar chegar à compreensão deste mundo arrogante e sobranceiro em que me calhou também viver, mesmo sabendo que, como sempre, me irá rejeitar e seguir indiferente e impunemente o seu insondável e tortuoso caminho.

Agora o que já não suporto mesmo é ouvir as cigarras, os políticos, os comentadores, os ídolos à força das nossas tv’s e o seu autismo intelectual, imoral, desonrado e despudorado impingir-nos mais pec’s que eternizam o crescente agravamento a que nos sujeitam crescentemente, estrangulando as migalhas de esperança e a qualidade - em vias de extinção - do que nos resta ainda viver, neste cantinho à beira mar plantado.
Talvez por isso, por ser tão chegado ao mar, me lembrei da vaga probabilidade de amanhã o mundo nos reservar também um tremor de terra com tsunami incluído, deixando aqui registo da catástrofe que hoje varreu o Japão.
(toc-toc na madeira, põe-te a milhas, agoirento!)
Mas o que não consigo digerir mesmo é a teimosia dessas mesmas vedetas das tretas infindáveis, cigarras do nosso descontentamento, que não abrandam os seus esforços desafinados mas concertados na tentativa de nos convencerem que a culpa de tudo isto é colectiva, nossa, destas meras e desprezíveis formiguinhas de que se alimentam permanentemente.
Porque se nunca fomos ouvidos durante todo o percurso em que nos encaminharam para esta outra forma de calamidade nacional, social, económica e até psicológica, se fomos, somos e continuaremos a ser sempre tudo menos preocupações e menos ainda determinantes para elas decidirem as estratégias e formas de a esconderem, combaterem, ou amenizarem, o que não podemos definitiva e simultaneamente ser também é culpados ou acusados de co-responsabilidade e conivência pelo estado a que isto chegou.

E é assim que amanhã será outro dia…

quarta-feira, 9 de março de 2011

Trouxe-as comigo


Trouxe-as comigo
Chego a casa tarde e de um dia longo trago só as horas passadas contigo.
Horas diferentes e inesperadamente gratificantes, tocadas por uma ternura amiga, quente e meiga, tão rara de emergir num cais calhado de um acaso forçado.
Porque hesitava procurá-lo, tendo a consciência temerariamente aguada dele, de me atrever a aportá-lo - ou falhá-lo definitivamente - desde que o pressenti possível e a cirandar entre as coxias apinhadas.
A que me levaram outras emoções intraduzíveis por aquela outra mulher-poetisa que um dia me tomou o afecto sem que perceba ainda se teve consciência do bem que me fez.
Ali, a olhar enternecidamente para ela surgiste-me a provar que afinal há seres que são tão previsíveis quanto os meus devaneios fizeram deles reais.
E enquanto ouvia poesia a que insiste em chamar versos deixei os olhos percorrer outros rostos, finalmente acrescentados dos seres que os suportam, para final e discretamente te fixar.

Porque era o teu perfil virtual que mais se sobrepunha e correspondia ao que se pode deduzir de alguém real. Mulher de alma e corpo, expostos numa informalidade parada no resguardo da intimidade e graciosamente disponível para todos. Atenta, cativante, sorridente, fluente, extrovertida e subtilmente inteligente.
Guardei de ti essa imagem do percurso militante e cúmplice pela Angelina, apenas esboçada da primeira vez que já ali te vira, precisamente no mesmo lugar a que me levara a simpatia da Lita.

E decidi que corresponderia ao desafio de aparecer, embora as tuas ultimas palavras me tivessem feito reflectir:
“Vai, mas só quando puderes...”
Foras sempre assim, enigmaticamente precavida para comigo, para com os meus gracejos e comentários, dando a cada frase deixada significados e reticências que me surpreendiam e... quase desiludiam.

Percebera já aos poucos pelo que a Angelina me contara que houvera em tempos um preconceito generalizado, porque me atrevera a entrar por ali dentro a dizer quem era e julgando que todos eram o que diziam.
Porque entrara nesses meandros sem consciência da vigilância geral, acrescentada de muita coscuvilhice e alguma inveja, a partir daquele momento em que desconfiado decidi saber porque tinham as adolescências das minhas filhas desaparecido neles.
E embora elas estivessem já esgotadas queria estar prevenido, porque a vida tem destas coisas e eu sabia já que voltarei a lidar com novas, dentro em breve.
Percorri assim caminhos desconhecidos, até tropeçar num espaço e deixar nele o que julgava serem comentários que só ao próprio interessariam.
E assim julgando-me num oásis apenas levantei uma poeira ácida num deserto de ética e acabei proscrito e maldito, sem ter a mínima ideia que gerava tais melindres e ressentimentos.

E por isso a tua frase me fez pensar e hesitar.
Até descobrir que podia ir, fosse qual fosse o sentido que lhe desses.
E fui. Ainda bem, por tudo o que me fizeste sentir.

Mais agora, em que ao ler o que descreveste tão bem se comove este saber que o sentiste também.

sexta-feira, 4 de março de 2011

A Primeira Dama e eu


Uma vez em Sidney dei comigo de repente ao lado de um galã do cinema, daqueles mesmo famosos que vivem em Hollywood, o Mel Gibson, que entrava para a estreia de um filme seu na Austrália.
Assim fiquei a saber também que tinha já na altura uma carequita de franciscano, escondida pelas filmagens e que por isso nunca aparecia ainda nos ecrãs, mas isso não interessa nada.
Isto a propósito daquelas vaidades pessoais que resultam apenas e exactamente de conhecermos alguém verdadeiramente famoso.
Coisas afinal sem importância nenhuma que, como quase tudo o que guardamos ao longo da vida, nos ocupam esse recanto do ego.
E, já agora, aqui vai outra.


A Primeira Dama e eu

Ainda adolescente e em Moçambique, onde vivi essa parte deliciosa da minha existência, mas já sem pais que tinham regressado à metrópole portuguesa após o 25 de Abril, conheci aquela que será provavelmente a única mulher no universo conhecido que chegou a primeira dama em dois países, a Graça Simbini, então namorada do Samora Machel e que é actualmente mulher do Nelson Mandela.

Eram divertidos aqueles tempos.

Fiquei lá porque namorava a Ana, porque também tinha uma cadeira atrasada para poder entrar na faculdade de arquitectura de Lisboa, onde muito sinceramente não me imaginava a viver definitivamente. E talvez esse fosse o único e determinante porquê daquela minha indecisão de partir.
E para sobreviver decidi dar aulas de Geografia e História, matérias que teria também de estudar previamente, pois do seu programa já não constava nem Infante Dom Henrique nem a Serra da Estrela.
Colocaram-me na Escola Secundária da Malhangalene, vendo-me inesperada e temerariamente nomeado seu director seis meses depois, por uma daquelas circunstâncias muito peculiares das revoluções.
Era na altura e naquela instituição, por inerência de ter decidido manter as duas nacionalidades, o docente moçambicano com mais atributos académicos para o cargo.

E assim, embora um pouco menos bronzeado do que o previsto, quando a primeira Ministra da Educação decidiu visitar a escola lá estava para recebê-la, ao lado da chefe política do grupo dinamizador local, que era uma mulher de origem meio asiática, a que vulgar mas incorrectamente chamávamos caneca, também jovem mas mais velha e sobretudo dominada por um ideário político acéfalo que me causava pele de galinha.
Em época de fervor revolucionário e implantação da independência recentemente conquistada impunha-se aos alunos uma formação por turmas no enorme pátio interior da escola, antes do início das aulas, quer no horário da manhã quer no da tarde.
Tudo aquilo me irritava de sobremaneira, não só por me lembrar um pouco a Mocidade Portuguesa mas principalmente porque me apercebera já que, embora progressista, não prescindia do meu lado intrinsecamente liberal e desalinhado, que naturalmente se insurgia contra todos os excessos de disciplina ou unicidades decretadas.
E assim os períodos lectivos iniciavam-se com os alunos formados a entoarem hinos aos heróis da revolução moçambicana, que eram elementarmente os Camaradas Presidente Samora e a Graça Simbini, já reconhecida por todos como a futura Primeira Dama do nova nação emergente, já que estava iminente o casamento entre ambos.

Ora na mesma época Moçambique fora também atingida por uma onda de adesões à seita religiosa das Testemunhas de Jeová, que singrava principalmente entre a população mais arredia à mudança política.
E para desgraça dos alunos oriundos dessas famílias a seita proibia-os de cantarem os hinos dirigidos aos heróis revolucionários.
Perante este quadro inibidor a intratável camarada chefe exercia então o seu punhado de poder local da forma mais desumana e cruel possível; durante os hinos andava pelo meio das formações a observar quem não cantava realmente - havia uns que eu mesmo detectava apenas mexerem os lábios, assim como os jogadores de futebol brasileiros nas selecções de outros países - e, no final, quando os restantes alunos se encaminhavam para as salas, mandava-os permanecerem no pátio.
Depois ouvíamos ao longo da manhã ou da tarde a sua voz exaltada gritar a cada um deles a exigência de uma interpretação a solo dos hinos, a que naturalmente a maioria se recusava.
Várias vezes fui ter com ela após esta humilhação dos alunos e que me deixava incomodado, mas encontrava-a invariavelmente corada de irritação e surda aos meus apelos e pedidos para que desvalorizasse a situação, pois os miúdos mais não eram que vítimas das orientações que os pais ou a sua fé lhes transmitiam.

E quando soube da visita da Camarada Ministra ao estabelecimento a mulher entrou em êxtase revolucionário e inquisitivo.
Confidenciou-me então, exultante, que iria pedir à Ministra para enviar para um dos já então muito temidos campos de reeducação da Frelimo todos os jovens prevaricadores a que a sua insistente perseguição e humilhação pública não conseguira dobrar a vontade e a obediência às instruções paternas ou convicções religiosas.
Percebi finalmente que falava a sério quando me mostrou na véspera da visita a lista de nomes que tinha muito criteriosa e empenhadamente reunido deles.
Quando a visita finalmente se concretizou e após o cerimonial de recepção, preenchido por hinos e vivas entoados pelos miúdos, a Camarada Graça reuniu-se com ela e comigo no meu gabinete.
E foi sem espanto já que a ouvi abordar o assunto e explicitar o seu cruel pedido.

Contra o que tinha tentado impor-me não fui capaz de me conter e dei então também a minha interpretação dos factos, argumentando não só que se ia castigar a inocência e a obediência de simples adolescentes apenas mal orientados por pais ou pastores, como eventualmente interromper-lhes uma formação tão importante para um país que reconhecia não ter quadros e, sobretudo, isolá-los em lugares onde coabitariam com outras reais e muito mais nocivas marginalidades, tornando-os provável e definitivamente irrecuperáveis para o processo revolucionário que tanto carecia deles.
A Ministra ouviu-nos silenciosa e serenamente, acabando por desviar a sessão para outros aspectos, sem deixar nenhuma indicação perceptível de como tinha recebido as duas versões e opiniões tão contrastantes e opostas do Caso das Pequenas Testemunhas de Jeová.
E abandonou finalmente a escola sem uma palavra sobre o assunto, o que não deixou de me preocupar pois reconhecia que a orientação vigente era por demais coincidente com a perspectiva da minha colega.
Aliás a partir de então as minhas relações com a chefe da dinamização política evoluíram para uma ignorância quase total, sendo contudo óbvio que ela aguardava a todo o momento o meu afastamento, quiçá para um dos seus muito recomendados e meritórios campos de reeducação.
Mas não.
Cerca de um mês depois recebi uma convocatória para me apresentar no Ministério da Educação e quem me recebeu informou-me que estava mandatado pela Camarada Graça Machel - pois tinha-se entretanto casado com o Presidente - para me informar que ia ser transferido para o próprio ministério, ficando a trabalhar sob as ordens directas da Camarada Ministra.

Pois, mas aí eu lembrei-me do meu liberalismo dominante, da minha língua solta, da minha irreverência nata e fui à novíssima Embaixada de Portugal usar a minha outra nacionalidade – que ficou assim a partir de então - para pedir uma viagem de urgência até Lisboa.
Se fiz bem ou mal não sei mas que me mantive de boa saúde até agora isso sei, mesmo perdendo a oportunidade de aumentar este registo de uma dessas vaidades pessoais que, vendo bem, não têm qualquer importância para mais ninguém.