segunda-feira, 20 de junho de 2011

A hóspede




Ir para África disposto a transformá-la num recurso paliativo para obter distancia do mundo reconhecido e de uma perda pessoal marcada ainda pela incompreensão e revolta, porque permanecia como cruel e injusta desforra de forças desconhecidas e hostis, pode conduzir-nos a processos vivenciais e psicológicos complicados.

A hóspede

Mas foi assim que fui dar a Luanda, após uma morte tão súbita e inesperada como inexplicável.
Larguei desajeitadamente o que tinha e, mentalmente bloqueado, parti simplesmente, aceitando as pancadinhas nas costas como incentivos de recuperação.
Um ano depois percebi a ingenuidade e voltei a pôr a solidariedade no sítio que a merece, um nicho de amigos muito restritos onde não cabem interesses materiais partilhados.
E como tinha nascido numa outra África, já extinta, em que a natureza ficava só à distância da curiosidade aventureira, também as ideias preconcebidas de poder vaguear a minha ânsia de liberdade e isolamento se desvaneceram nessa Luanda, onde entre o penoso e moroso ir e vir laboral sobrava só uma clausura forçada em hotéis e domínios residenciais protegidos pela presença constante das silhuetas vigilantes.
Meter-me no jipe e ir ao fim de semana até paragens distantes, ainda que ao abrigo da segurança proporcionada por um qualquer e esporádico resort de luxo, só era possível se me dispusesse a aceitar a integrar uma excursão mínima de dois jipes e a companhia de parceiros cujos apertos e labirintos de vida tinham também feito aportar aquelas paragens.
Mas fazê-lo não estava nos meus humores, porque o que ali me conduzira não se coadunava com pescarias colectivas e conversas generalistas sobre mulheres, pretos presunçosos ou carreiras que a acreditar neles não justificavam a sua presença naquele cenário tão vil e mercantilista.
Por isso foi crescendo em mim um ressentimento nascido de afinal não conseguir sequer tocar as condições básicas que me tinham feito romanticamente imaginar aquele como o lugar onde podia ir readquirindo anticorpos contra a o desalento e a amargura.
E á medida que o tempo passava a claustrofobia imposta foi-me tornando indiferente, cínico e revoltado com o meu engano e com tudo o que me rodeava.
Pelo meio ia-se esbatendo também uma certa coerência comportamental, que anteriormente gostava de erguer como mais-valia pessoal, porque a sentia, até pelo que via constantemente em redor, desenquadrada da lei da selva vigente, daquele salve-se quem puder e souber, numa sua acomodação livre a valores e modelos existenciais sem qualquer regras éticas e morais.
Porque naquela nova babilónia os vícios privados se tornavam progressivamente o único brinquedo que restava.
Vivia então numa House das irmãs de um ministro poderoso, que se permitiam escolher criteriosamente os hóspedes, e que na lotação plena andariam pela vintena.
O ambiente era sereno, bastante mais intimista e melhor que o dos melhores hotéis, sempre alvoroçado pela impessoalidade dos ocupantes em trânsito temporário e sôfrego de contactos e visibilidades, e curiosamente também o próprio serviço era muito mais personalizado, embora sem mordomias excessivas.
Mas ainda que houvesse rigor nos horários das refeições, sempre marcados por sobressaltos frequentes, porque desenvencilhar-se do trânsito anárquico e permanentemente engarrafado era também uma incógnita em termos de duração, sendo os restaurantes uma fraca alternativa, sobrava depois deste alvoroço diário um convívio mais calmo no pátio da House, entre o corpo da casa mãe e o dos quartos, onde era servido o café e finalmente se podia molengar aquele calor abafado e cansativo, ou até e com a contenção devida às proprietárias desentorpecer alguma má língua local.
Pátio que aos fins-de-semana se tornava quartel dos que não se deixavam seduzir pelas excursões mais longínquas nem pelo assalto balnear á ilha, onde os técnicos estrangeiros e os poderosos locais disputavam os restaurantes, também eles prevenidos de seguranças armados.
O centro comercial que depois se tornou numa nova variante destas limitadas alternativas era então ainda e só uma construção em curso.
E porque era impossível não criar laços com os poucos que como eu residiam em permanência na House foi-se estabelecendo entre nós um código e uma estranha solidariedade que nos distinguia dos que ali iam passavam esporadicamente, acolhidos pelas suas referências abonatórias, ou outros que de tempos a tempos reapareciam, técnicos de ONG´s, formadores, ou personagens ligadas à fiscalização e auditoria de algumas actividades de iniciativa estrangeira em Luanda.
Estes permanentes resumiam-se a três casais, curiosamente constituídos todos apenas por um elemento trabalhador - que num dos casos até era a mulher, o que como é óbvio destoava da generalidade – a um gestor bancário, uma formadora lusa ou angolana, conforme a sua conveniência decidia, e eu próprio, os únicos três que ali estavam sem enquadramento familiar, embora no caso do gestor, o Augusto, fosse casado e pai, e ela, a Graça, que se auto intitulava jocosamente como a presidente do povo, tivesse um namorado em Lisboa. Eu não me abria muito, mas era óbvio também que nada de importante deixara, até porque durante um período tive também comigo a minha outra filha.
Esse estatuto partilhado de únicos residentes livres acabou por nos dar um conhecimento mais subtil das orientações e preferências individuais, tal como uma certa solidariedade baseada na não agressão e por isso quando num certo domingo deparámos á chegada de uma ida à praia com uma nova hóspede, acabadinha de chegar entrámos os três em ebulição.
Porque ela era uma presa apetecível para todos, considerando as preferências que já reconhecíamos uns nos outros. Porque para além do Augusto e eu sermos claramente heteros – o que por aquelas paragens nem se pode considerar uma regra muito garantida – a Graça, por muito que propagandeasse o seu compromisso deixara-me progressivamente a convicção de ser bi, preferencialmente lésbica, e em qualquer dos casos definitivamente autoritária e dominadora.
Era uma mulher grande que por ter uma percentagem discreta de sangue negro disfarçava bem o facto de ser também um pouco cheia,  em que o mais assinalável era o seu feitio e exuberância, alternando das boas para  as más disposições sem transições nem motivos compreensíveis, falando com todos e fazendo dessa informalidade permanente uma porta para criar e personalizar conhecimentos com todos os que com ela se cruzavam.
Ele, o Augusto era bem apessoado e declaradamente peneirento, sendo provavelmente de todos aquele cujo charme mais saltava à primeira vista mas acabava por se apagar um pouco na paisagem dinâmica daquele ambiente fechado, quando a Graça e eu nos lançávamos numa desgarrada cativação verbal, cruzando temas e humores com que pretendíamos fixar a atenção da visitante.
E foi assim durante toda a quinzena em que a ela permaneceu em Luanda.
Em conjunto proporcionámos-lhe serões interessantíssimos, sempre abrilhantados pelas poses de galã do Augusto e pelas gargalhadas e opiniões cruzadas da Graça e minhas, e desdobrámo-nos a levá-la a todos os lugares que podiam caber numa estadia tão breve, desde as melhores vistas, os melhores restaurantes, as melhores praias da ilha e até uma excursão a Cabo Ledo, com paragens em todos os lugares cativantes e apelativos à sua máquina e câmara.
Após o café da noite os serões prolongaram-se insolitamente com os quatro presentes muito para além do que ali era ali praticamente tido e respeitado como hora do recolher, o mais tardar um pouco além das vinte e duas, e o fumar dos últimos cigarros, que nos tirava aos quatro dos quartos onde tal era rigorosamente proibido, chegava a suceder perto da uma da manhã.
A cativante intrusa, embora denotasse discreta consciência da atracção que provocava conseguia contudo manter e aparentar uma perfeita equidistância relativamente aos seus três admiradores confessos, sem nunca demonstrar qualquer preferência ou preterência.
Além de ter sido rápida e elogiosamente alcunhada também pelos os empregados da casa como Miss House, tal o corrupio de desvelos e atenções que em todos despertava.
Era uma mulher particularmente elegante e harmoniosa de corpo e feições, de conduta e posturas irrepreensíveis e discretas, formadora de relações públicas, mas o que mais me cativava nela era a sua atitude tranquila, cândida, graciosa e simultaneamente atenta a todos e a tudo.
E após o regalo final do passeio a Cabo Ledo, que todos reclamámos inequivocamente como fruto da iniciativa pessoal aproveitada pelos outros dois, no regresso levámo-la a jantar ao lugar mais elegante e selecto de Luanda.
De volta à House despedimo-nos pesarosa e já saudosos daquele tempo agitado pela boa surpresa que constituíra a sua presença, pois partia na madrugada seguinte, a horas tão impróprias que nem mesmo o mais cavalheiresco empenho nos faria deixar de delegar no chauffer da casa a obrigação de a levar ao aeroporto.
E nos dias seguintes embrenhámo-nos todos nas obrigações desleixadas pela prioridade com que acorrêramos a preencher a estadia da nossa amiga com atenções acumuladas, quase não nos cruzando na House, pois também aí chegados logo desaparecíamos apressadamente nos quartos.
Mas finalmente encontrámo-nos os três no pátio alguns sábados depois, após um pequeno-almoço menos apressado, decidindo pouco depois partilhar o dia que se oferecia radioso em refrescantes banhos na ilha.
Já ao findar dele e no regresso parámos para comer qualquer coisa no Clube Naval e foi aí que conversámos pela primeira vez sobre a ausente.
Lenta e envergonhadamente confessámos um a um que perdêramos o hábito do convívio ao café e fim-de-semana porque ultimamente dedicáramos as horas livres quase exclusivamente ao correio, ao Skype e ao Messenger.
Depois de alguns silêncios embaraçosos um de nós acabou por confidenciar que tal se devia a longas e diárias conversas com a nossa amiga comum, e após alguma desorientação colectiva, os outros acabaram por admitir como seu motivo de afastamento razões rigorosamente coincidentes…
E cada um terá deduzido também a razão porque durante a sua estadia dormira sozinho apenas duas em cada três noites...