sexta-feira, 26 de novembro de 2010

Um belo lugar II (no guardanapo...)

Café Royale...
...de um guardanapo recuperado


Vou-me agora...

Poderia apagar a mágoa
e deixar-te toda esta memória
mas seria assim como retirar a água
de um leito em foi dela o sulco e a história...

Vou-me agora...

Queria levar comigo
as migalhas do nosso ardor
e tomar para bálsamo de tanta dor
cada dos alentos que partilhei contigo...

Vou-me agora...

Não te queria abandonar
nem lançar a tamanho sofrer
e o que hoje fui incapaz de perdoar
será ferida que não mais cessará de doer...

Vou-me embora...

Porque se te tornar a ver
cederia às ternuras desses olhos
que sei agora serem meros escolhos
em que os meus se voltariam a envolver...


Filipe N

O maldito chip


Num gesto veiculado por uma revolta afinal similar à retida neste conto, e também marcado pela imposição de um poder que se nos sobrepõe e prova que afinal nada nos é verdadeiramente oferecido - porque surge sempre o dia da cobrança ou da retirada de acesso ao que nos atrevemos a pensar ser nosso - voltei aqui, principalmente para protestar.
Porque sinto já saudades deste tempo que se fina e de todos os que o partilharam por estes espaços moribundos, neste prazer só colhido da vontade de interagir a partir do que cada um sentiu e decidiu neles vitrinizar.

O (maldito) chip

No regresso à civilização daquele bimotor que agora vejo desaparecer no horizonte desta pequena ilha, onde espero ficar para sempre, quero acreditar que vai o encerramento definitivo de um pesadelo que duvidei ter algum outro fim que não o meu.
Olho em volta e acredito que reencontrei neste preciso momento a tranquilidade perdida à tanto, sentindo que será aqui que decorrerão todos os dias que me afastam desse fim que julguei tão perto e precoce nos últimos tempos.
Escolhi-a como último abrigo porque percebi que nenhum dos meus inimigos imaginará que escolhi um cenário deste tipo tão isolado e afastado de tudo o que é civilização e modernidade para exílio voluntário, por ser o oposto daquilo que sempre me caracterizou, atraiu, rodeou e procurei na vida.

Tudo começou há quase dez anos, em Lisboa e numa daquelas farras com que eu e os meus colegas comemorávamos o aprontar e fechar de um processo a ser levado a um qualquer congresso científico, na nossa incessante procura de visibilidade, notoriedade e reconhecimento.
Foi já com uns copos a mais que surgiu a ideia peregrina e alucinada, numa daquelas eufóricas fantasias em que nos embrenhávamos nesses momentos de descompressão.
E se não mais passou pela memória de nenhum deles nas semanas imediatas, nunca mais me abandonou o espírito, tornando-se mesmo uma obsessão permanente.
Assim que saíram, já de madrugada, fui de imediato para a net desarrumando também progressivamente a estante durante o fim-de-semana que se seguiu, à procura de uma pista por onde começar a investigar.
Nas semanas seguintes liguei e esgotei a paciência de inúmeros conhecidos de outras áreas científicas, percorri bibliotecas, embrenhei-me em ensaios e tudo o que havia que de alguma forma me pudesse ajudar naquela busca de um ponto de partida prático e material, no fundo tentando descobrir qual a abordagem e a área por onde devia entrar e começar a desenvolver aquela ideia louca.
E foi só quando me convenci que a achara que pus ao corrente os meus colegas, numa exposição que os foi aliciando crescentemente, até estarem eles mais excitados e empolgados que eu mesmo.
E durante seis anos mergulhámos todos freneticamente numa investigação fora de horas, que parecia só fruto de uma demência, recheada de fracassos e frustrações, até um dia a solução nos surgir súbita e inexplicavelmente num pequeno detalhe repescado de uma nova conversa de descompressão e desalento, pois foi precisamente quando ponderávamos já ser inevitável desistir e abandonar aquela utopia que ela nos abriu uma nova nesga de esperança e ânimo.

Meses depois tínhamos finalmente o protótipo do chip construído e pronto a ser testado, para depois o sujeitarmos a apreciação superior, de forma a obtermos um financiamento mínimo para o resto da investigação.
Porque sabíamos desde o início que nunca poderíamos expor e tentar ver aprovada como motivo de investigação uma ideia tão absurda, sem de alguma forma a complementarmos com uma qualquer evidência palpável que comprovasse pelo menos a plausibilidade da sua concretização, pois sem isso seriamos decerto tomados apenas por loucos e provavelmente encaminhados não para um fundo de investigação mas para o subsídio de desemprego.

E entrámos numa nova era de emoções contrastantes, desde a aprovação cheia de reservas, recomendações éticas e dúvidas até às primeiras cobaias a quem tivemos de remover precipitadamente o chip, dado o estado de confusão e desorientação em que entravam.
E foram precisos mais dois anos para conseguirmos finalmente desenvolver e integrar no sistema os filtros necessários para que só a informação que lhes era directa e exclusivamente dirigida fosse recepcionada e processada, sem uma sobreposição caótica e demolidora nem uma acumulação de sombras, ruídos e detritos das proximidades cibernéticas.

E finalmente um dia a cobaia não esgazeou, não enlouqueceu, não desmaiou, não entaramelou a língua ou proferiu sons incompreensíveis nem permaneceu como se nada lhe tivesse sido adicionado e implantado!
Finalmente tínhamos conseguido ultrapassar a necessidade moderna da informática física, tornado o ser humano receptor e emissor dela sem recurso ao manancial de adereços que até aí exigia!
Tínhamos num golpe de génio mandado o hardware ás alvíssaras, simplesmente implantando um chip que recebia, descodificava e transmitia direccionada e correctamente informação ao cérebro humano, podendo também emitir e formatar respostas, sem uso de qualquer equipamento, esforço físico ou derivado, salvo a implantação de um chip aparentemente idêntico a um pace maker dos doentes cardíacos.
Claro que ainda não sabíamos tudo, que muitos humanos não tinham a parte do cérebro que permitia esta forma de ligação, recepção e resposta ainda suficientemente activo e desenvolvido para permitir a generalização desta forma de troca de informação selectiva, liberta da escravidão dos acessórios informáticos que de indispensáveis passavam a obsoletas carcaças sem qualquer utilidade prática e irremediavelmente destinadas aos contentores de não recicláveis.
Uns ainda hoje não podem ser sujeitos com sucesso ao implante do chip mas fomos trabalhando e descobrindo progressivamente, com a ajuda de outras áreas e tecnologias, formas de activar e potenciar essa área específica da mente humana, tornando o sistema acessível a aproximadamente três quartos da população, que se podia concretizar através da produção e distribuição de uns simples comprimidos.
Lembro-me de uma risota geral sobre isso, quando trabalhávamos na forma de se processarem automaticamente as actualizações do software e um dos meus colegas afirmou que a maioria os compraria numa atitude muito discreta e envergonhada, como se estivesse a adquirir inteligência, ou comprimidos para estimulação sexual.
Curiosamente e à semelhança do que acontecera com a introdução de outras inovações generalizou-se rapidamente a ideia que o consumo desses medicamentos reduzia e inibia a potência sexual.
O injustificado contraste de efeitos assim popularizado entre estes medicamentos e o Viagra e similares tornou-se obviamente motivo de troças, anedotas e considerações negativas, consoante o meio em que grassavam tivesse um cariz mais ou menos intelectual, popular e até libertino.
Houve mesmo um anúncio polémico na tv que utilizou de forma bem humorada e um pouco machista esse preconceito popular mas que acabou por ser rapidamente retirado, dado o coro de protestos que certas associações gays e puritanas fizeram.

Esta foi a fase divertida, apaixonante e emocionante que nos devia compensar do empenho e abnegação dispendidos até á obtenção e aperfeiçoamento da inovação, uma fase infelizmente curta e em que nunca pensámos verdadeiramente no que iría provocar…
Quando apresentámos a nossa descoberta os média exultaram com ela e não pararam de a explorar, considerando-a alguns mais exagerados a descoberta do terceiro milénio, e em poucos dias tornámo-nos famosos, até motivo de debates em horário nobre, tudo indicando que rapidamente atingiríamos também mordomias, níveis de riqueza e popularidade que nunca nos tinham passado pela ideia.

Mas a reacção foi rápida e drástica.

Após uma nova apresentação da descoberta numa universidade francesa fomos atacados por uma carrinha que nos esperava no estacionamento à saída do auditório.
Dos cinco que constituíamos a equipa final - inicialmente fomos seis mas um desistiu ainda antes dos primeiros resultados animadores – resistimos apenas três aos ferimentos das rajadas com que nos balearam.
E a partir daí todas aquelas promessas de popularidade e sucesso a que nos começávamos a habituar se diluíram num ápice.
Passámos a ser vigiados, escoltados e mantidos em lugares secretos e fechados, vivendo não uma vida de privilégios e luxúrias mas inversamente como reclusos impedidos até de trabalhar ou estar com a família e os amigos.
Apesar disso e do escândalo que representava para o império informático e toda a indústria que vivia à sua sombra aquela caçada descarada e criminosa, ao fim de dois anos de atentados sucessivos restava apenas eu, e uma ideia revolucionária que também não chegara ainda a ser verdadeiramente implementada a nível mundial, porque os poderes económicos não pareciam particularmente empenhados nela.

O chip era afinal muito simples de produzir em massa, podendo por isso ser comercializado a um preço quase simbólico e a sua implantação no corpo humano teria também custo e exigências cirúrgicas idênticas às da implantação de um pace maker.
Mas a verdade é que os poucos que surgiram no mercado se vendiam a um preço exorbitante e só acessível à classe economicamente privilegiada.
Algumas faculdades de medicina chegaram a criar duas novas especialidades exclusivamente relacionadas com a inovação, uma para o diagnóstico das condições do paciente, sua preparação, acompanhamento e manutenção periódica do chip, e outra especificamente para os actos cirúrgicos da sua implantação e eventual remoção.
A indústria farmacêutica reagiu e as farmácias reivindicaram que eram as únicas entidades vocacionadas e tecnicamente apetrechadas para a sua aplicação, invocando que detinham competência polivalente para ela, uma vez que simultaneamente apareceram inúmeros complementos e potenciadores diferenciados e necessários á perfeita adaptação a cada utente.
Enquanto o nosso número ia decrescendo até só restar eu, sempre em movimento por lugares recônditos e remotos, a civilização desdobrava-se em ofertas, polémicas e guerras pelo monopólio do novo negócio.
Surgiram chips com capacidade de armazenamento para toda a informação necessária a uma viagem aos limites da galáxia, outros que se podiam aplicar e remover sem necessidade de intervenção cirúrgica e os mais recentes permitiam já o envio dos sons e cheiros ambientes e até do campo visual do emissor.

Vivi assim mais um ano, em reclusão e descrição total, sempre a mudar de lugar, gastando os adiantamentos pagos pelos direitos da descoberta num sem número de despesas estúpidas e frustrantes, alojamentos isolados, viagens escoltadas e muita segurança, completamente afastado de tudo o que mais gostava, pois fora sempre um ser eminentemente social e mundano, apesar da imagem que se divulga dos cientistas.

Já saturado e conformado a prescindir de tudo o que era previsto caber-me e aos meus parceiros entretanto assassinados pela descoberta de um sistema que aliviava a raça humana da dependência dos corpos físicos informáticos que a tinham escravizado nas últimas décadas, decidi preparar a minha própria fuga do isolamento em que vivia forçado iludindo todos, incluindo o cordão de segurança e vigilância que me era imposto para sobreviver.
Com a ajuda daquela que desembarcou comigo e está agora ao meu lado, pois percebi que só me seria possível concretizar se contasse apenas com uma única conivência e se ela se dispusesse a também desaparecer definitivamente de circulação.
Porque sei agora do que é capaz o poder económico para fazer abortar qualquer ameaça que se lhe atravesse à frente.
E ela foi alguém que nos últimos tempos me acompanhou e por quem me apaixonei, porque a paixão é um factor imponderável da vida, mesmo quando esta decorre nas mais insólitas e precárias circunstâncias, que nem os cientistas conseguem controlar, programar, ou até abster-se.
A ela devo também o fim do meu estado de conformismo e letargia, porque foi a paixão que me despertou que me fez reagir e rejeitar aquele estado de não vida, devolvendo-me a capacidade de reagir, sonhar e a vontade de viver e de me rebelar, mesmo que para isso tivéssemos que arriscar de novo a vida num fuga desesperada.
Que concretizámos de forma tão criativa como a minha grande obra, envolvendo condutas, contentores e carros de lixo, cordões de lençóis e a confecção secreta de cabeleiras desfiadas de tapetes de nylon ou a coloração delas embebendo-as em soluções à base de graxa, canela, vinho e fixadas com vinagre.

E ficaremos os dois por aqui até que a morte nos leve, nesta ilha insignificante e minúscula, desinteressante e pobre, praticamente desconhecida e de população quase pré-histórica.
Porque não consegui inventar nem imaginar outra forma de me libertar do pesadelo em que a minha vida se transformou, depois de ter descoberto algo que devia estar a permitir à humanidade recuperar muito do que se foi perdendo com a modernidade tecnológica sem curiosamente ter de prescindir de nada.

Nem mesmo aqui, neste lugar nenhum, consigo deixar de ter um pensamento perverso:
É que seria uma comunicação assim que os cérebros da Humanidade inteira receberiam agora, se em todos nós estivesse já implantado o (maldito) chip.

Filipe Nasi
(no final de uma jornada em que fui também Diogo e FE…J)