sábado, 8 de janeiro de 2011

Desabafo





A retemperar o fôlego e já adoçado às almofadas deixo a mão tactear na mesa-de-cabeceira o maço até dele tirar o cigarro que acendo langorosamente.

E enquanto sigo a linha ondulante de fumo da primeira baforada pergunto-me que será feito dos rituais do amor e da paixão?

Aquelas sensações que dominavam e avassalavam a existência, transportando-a da mais dolorosa infelicidade à mais eufórica alegria e levitação num estado próximo da felicidade total sem qualquer outra explicação que a de ver reconhecida ou rejeitada uma exclusiva dedicação emocional a alguém que invadira e tomara todos os recantos da nossa atenção e paixão?

Quando um simples olhar do ente amado parava a respiração e nos fazia donos do universo, ou nos atirava inversamente para as profundezas da incompreensão e da mais mortificante e sofrida solidão?

Seriam meras características das inseguranças da adolescência, quando as substituímos pelas certezas incompletas que nos tornam cegos, surdos e mudos à oposição?

Não, acho que não.

Porque estar próximo, tocar a mão ou cheirar o perfume do ente amado era um momento inigualável de êxtase existencial.

Quando a nossa atenção registava e se enternecia em cada pormenor e detalhe notado nesse ente e quando o nosso corpo se disponibilizava e estremecia de prazer só por se ver aceite como parceiro dessa paixão total, acalmado não pela concretização do seu desejo carnal e lascívia erótica - que se escapuliam de muitas formas, tantas vezes imperfeitas, quase involuntárias e até solitárias - mas pela sensação de plenitude que a proximidade física e o toque terno do hálito amado lhe proporcionavam.

Foi-se tudo na entrada da idade adulta, não a do bilhete de identidade mas a desta era de informação cruzada e habituação às vivências e exigências rotineiras e fugazes, mesmo as sexuais, em que o percurso cada vez mais apressado e automatizado de todos esses estádios vai substituindo o desenrolar dengoso e simultaneamente intenso, eufórico ou doloroso, dos rituais do amor e da dedicação que um sentimento por outro ser proporcionava.
Acreditava-se simplesmente que havia uns poucos a quem a natureza doara aliatoriamente o benefício do sexapeal e da competência, enquanto os outros acoitavam e protegiam a sua suspeita de mediocridade atrás do conformismo e do matrimónio, mantido como instituição definitiva e irreversível de arrumação social e familiar.
.
Não havia um assunto sério chamado sexo nem muito menos diálogo e esclarecimentos de curiosidades inter sexistas mas tão só desafinados e desgarrados monólogos individuais das incertezas isoladas, com cada um a fazer figas para não constar dessa maioria cinzenta que nada sabia de si mesma nem do infinito mundo de sensações e capacidades eróticas afinal acessíveis a todos os que a elas se dediquem.

Mesmo as mulheres, agora reconhecidamente detentoras de uma autosuficiência que destroçou os mitos do machismo, obrigando o masculino a actualizar-se e a aceitar que o seu papel só se sustenta numa competência facilmente avaliável, pouco ou nada sabiam desse universo que detinham.

Reconheço a esta distância que o conteúdo erótico e sexual do conjunto de sensações que constituía esse sentir apaixonado dificilmente se pode comparar à objectividade actual, mecanizada e perfeccionista do sexo orientado pelo controlo, medido pela obtenção de resultados físicos e pelas metas balizadas na competência dos desempenhos que os substituíram.
Mas com eles esvaiu-se essa outra magia das sensações totais, que não cabiam numa contextualização só física ou só mental, esses únicos e verdadeiros momentos de apoteose ou agonia sentimental e passional.

Tenho saudades desses rituais e, para ser franco, sinto-me também meio saturado do aperfeiçoamento técnico e da excelência dos resultados que se lhe seguiram.

Aliás como deste cigarro...

Sem comentários:

Enviar um comentário