terça-feira, 10 de maio de 2011

Entre Paraísos





Entre paraísos

Refeita a mochila metera-me de novo ao caminho, ansioso por deixar na cidade a ilusão alimentada que a passagem nos dias anteriores pelo paraíso com a Isa poderia ter continuidade ali.
Essa convicção fora criada a partir do momento em que ela se juntara inesperadamente à fogueira com que tornava aquela noite húmida mais acolhedora, só povoada pelo rugir bravio do mar, escancarada ao infinito de um manto azul escuro estrelado e também à poderosa afirmação de autonomia que me marcou o final da adolescência.
Viera em magote juvenil, próprio das férias grandes, mas rapidamente me cansara do seu corrupio constante, entre as catembes no bar do parque de campismo, onde alternativa ou acumulativamente alguns seduziam estonteantes bifas da Cidade do Cabo para uma mal speakada marmelada continuada na discoteca do hotel.
E refugiara-me ali, acendendo aquele lume discreto e afastado do balbucio habitual, talvez porque fora dos primeiros a vir, nos anos anteriores, e já tinha percorrido aqueles mesmos desígnios mundanos.
O aparecimento da Isa fora nesse quadro de isolamento procurado um acontecimento totalmente diferente e logo destrinçado da habitual prioridade flirtista.
Primeiro porque era conhecida e não uma anónima e ocasional estrangeira, estas tão prontas como nós à aventura sazonal e descartável, de avanço definitivamente imprevisível, porque havia as que a seguiam até ao fim e outras que esporadicamente retrocediam para o abrigo desaconselhável das roulotes dos seus enormes e toldados papas.
E também porque tinha dela a ideia de marrona do liceu, muito metida com as suas matemáticas, embora reconhecesse desperdício nessa exclusividade pois já lhe detectara anteriormente a figura atraente e o que então confirmei, que era culta, versátil, espirituosa, e quando queria conversadora e companhia cativante.
E por isso naquela noite e nas duas que se seguiram construímos de forma entusiasmada e aparentemente mútua uma interacção empolgante, com um ou outro beijo de permeio, mas sem grande fixação nessa esfera, até por sermos ali claramente os que a tinham repudiado.
Quando ela se despediu, pois regressava com os pais para a cidade, pareceu-me inteligente fazer o mesmo, para nesse regresso à normalidade vivencial perceber se a empatia nascida fora mero episódio de companhia casual ou se resistiria ás diferenças dos mundos em que por lá nos movíamos.
Porque definitivamente eu não circulava entre os caixas-de-óculos que habitualmente a rodeavam nem ela parecia compatível e interessada nas tropelias mundanas em que usualmente me integrava.
E quando depois de um regresso pitoresco e desesperantemente lento, percorrido no maxibombo e ferryboat obrigatórios, a procurei no club de mini golfe, foi a decepção que encontrei. Nem ela parecia disponível para abandonar o seu grupo de totós desjeitados e presuncosamente intelectuais nem consegui resistir ao segundo pleno de buracos, o que para além do mais me tornou ali também odioso.

De regresso à Ponta do Ouro, praia-paraíso selvagem na extremidade mais Sul de Moçambique - a que o meu pai acrescentara uma das primeiras casas de férias e que durante aquelas disponibilizei aos companheiros apesar de só lá ir tirar o sal - apoderei-me durante o tórrido dia da sombra formada por um curioso triângulo de três pequenas arvores que tinham nascido avançadas no areal da praia, implantado um pouco a Norte do hotel.
Ali me refastelava então indolentemente durante o pico do calor, que era praticamente toda a fase diurna, privatizando aquela formação vegetal e beneficiando da sua insólita frescura, embora de vez em vez atravessasse o areal e desafiasse a furiosa rebentação, passando depois meia hora protegido dela e na crista do ondular forte e vivo e de um Índico ocasionalmente visitado por tubarões.

Tinha passado pelas brasas um tempo indeterminado e estava ainda a reagrupar preguiças para ir comer qualquer coisa ao hotel, afastado dali pouco mais de cem metros quando ao meu lado um sussurro feminino me trouxe palavras inglesas.
Olhei, ainda meio estremunhado e vi aquela que era, desde o início dessa temporada balnear, o motivo de todas as conversas e cobiças babadas do grupinho que acompanhara.
Era a mulher mais deslumbrante que estes olhos que a terra há-de comer tinham visto até então.
E sabia até, pela bisbilhotice fervilhante dos dois lugares onde obrigatoriamente me podia alimentar, que era a figura principal de um filme estrangeiro que estava a ser parcialmente rodado ali.
Já a vira na primeira noite, em que dera uma saltada à discoteca, quando entrara acompanhada pelo séquito das filmagens e muito em particular por um galã que fizera em contraponto com ela as delícias do mundo feminino presente.
Embora já tivesse percebido então que as mulheres usam um código nem sempre coincidente com o meu sobre a beleza masculina não me fora difícil detectar no espécime todos os atributos necessários a uma preferência generalizada no sector, já que se tratava de um homem muito alto e elegante cuja cuidada e basta cabeleira loira, tão clara quanto o aguado dos olhos azuis, enquadrava feições perfeitas e harmoniosas.
A mulher que tal como ele andaria pelo meio da casa dos vinte era a correspondência perfeita para prender a atenção masculina tradicional, embora de tipologia e morfologia físicas totalmente contrastantes.
Tinha um corpo escultural, proporcionado e mediano que revelava a sua origem latina, culminado na farta e brilhante cabeleira que valorizava um desenho facial perfeito e exótico, acrescentado pelo contraste e vivacidade de expressões que tornavam difícil afastar os olhos dela, pois conseguia transmitir alternadamente um completo alheamento à envolvente e uma escaldante atenção focada.
Para além disso distinguiam-se ambos por se movimentarem de forma coordenada e langorosa, como se fossem guiados por um ritmo exclusivo e inacessível aos demais, abrindo nesse seu deambular autista pela pista uma clareira espontânea entre a multidão, rendida à contemplação daquele centro incontornável de todas as atenções.
Deles guardei nessa visão a ideia de um par perfeito e romântico, antes de me retirar para o viver eremita que elegera como forma de atravessar essas férias.
Era pois ela, a mulher-deusa do cinema longínquo, quem se abrigara também no meu refúgio do calor diurno durante a minha sonolência e se me dirigia, confortável e paralelamente deitada a menos de um metro do meu corpo.

Passámos lá a tarde, numa tagarelice e mímicas divertidas e animadas, alternando o inglês, quando este me era insuficiente, com um italiano absorvido do neo-realismo cinéfilo e um gesticular de larga liberdade e amplitude.
Diálogo que levámos nas passeatas à beira-mar para colhermos dela salpicos de frescura e que teve o imediato condão de apagar da minha mente a Isa e o desencanto trazido.
Que simultânea e inevitavelmente inflamou também a curiosidade e a palermice dos meus pares de férias, o que não menos obviamente me reforçou o orgulho afirmativo, pois já notara comentários trocistas dirigidos ao alheamento social que adoptara.
Nessa noite veio mesmo buscar-me ao triângulo para me juntar ao seu grupo na discoteca, apresentando-me a todos e dançando exclusivamente comigo.
O seu belo companheiro foi também de uma delicadeza e simpatias insuperáveis para comigo o que, para além de me confortar, esboçava interrogações que contudo não me atrevi a intrepertar e explorar de imediato.

Já de madrugada despedi-me dela com grande emoção, pois sentia que o simples facto de me ter dedicado a sua preferência era já em si mesmo prémio para a nascente convicção que iria no futuro reforçar a minha independência e definitivamente orientar-me por decisões pessoais e não pelo pensar e agir socialmente alinhado e abrangente.
Já com todo o grupo instalado no autocarro ela manteve-se junto a mim numa despedida marcada pela intensidade dos olhares e foi então que me disse que iriam permanecer dois dias na capital para rodarem curtas passagens do filme.
E que teria pena de não ter lá a minha companhia.

Esta declaração inesperada deixou-me sem pinga de sangue, pois percebi que até então me obrigara a interpretar a atenção dela como mero capricho de fastio, sem acesso a outro desenvolvimento, o que agora subitamente se revelava um erro de leitura imperdoável.
Mas num último arremesso de coragem perguntei-lhe directamente se ela não namorava o seu atraente colega.
Ela olhou-me, virou-se para as janelas do autocarro e apontando para uma delas, onde vi um dos elementos do grupo, respondeu-me:
- Não, o namorado é ele…
Fiquei por momentos confuso e perdido no raciocínio mas observando melhor e vi também pela primeira vez a forma como o ocupante do vidro fixava o galã sentado ao seu lado, e acendeu-se finalmente a luz que até aí faltara ao meu espírito, compreendendo que não se referia a si mesma...
Ela também o notou e sem falar transmitiu-mo por uma expressão simultaneamente divertida e trocista.
Recuperando a agilidade mental perguntei, naquele dialecto que inventáramos e já com ela a subir os degraus, se à hora de partirem, na manhã seguinte, não haveria lugar para mais um...
- ...nem que seja lá atrás, em pé na coxia ou mesmo na bagageira, junto às malas?...
E foi com nova expressão, esta enigmaticamente distante, lançada já sobre o ombro, que me esclareceu que o tinha já reservado, ao seu lado.


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