terça-feira, 29 de março de 2011

O desconforto moral


Manet

O desconforto moral

Estabeleci-o, ou antes, conheci-o no final da minha adolescência abanada pelo 25 de Abril.
Estava ainda em Moçambique, adiando a partida para uma faculdade de Lisboa.
Curiosamente perspectivava de forma quase natural e subconsciente que após a minha formação académica voltaria para lá, pois tinha já então consciência plena do tipo de qualidade de vida que procurava, que não se esgotava em formas comuns de materialidade e sucesso sócio económico.
E como crescera naquelas paragens, mas com férias passadas na Metrópole, reconhecia pela comparação dos tipos de vida e sem equívocos que os níveis de liberdade e interligação à humanidade e natureza que me atraíam estavam todos ali e não nos lugares visitados, como pudera testemunhar progressivamente.
Por isso a inevitabilidade de uma partida agora sem regresso provável me fazia então adiá-la, recorrendo a uma cadeira para a atrasar...
Namorava também a Concha, que tinha entretanto viajado para Lisboa pois estava iminente o nascimento da sua sexta irmã, num desfasamento ao seu de quase duas décadas.
E por isso preenchi a sua ausência com o regresso aos lugares da Polana que tinha deixado de frequentar após o início do namoro com ela e que eram afinal os mais apetecíveis e mundanos da cidade: o Sheick, o Hotel Polana e no adiantar na noite alguns outros mais distantes para onde nos empurrava a vontade fútil de a prolongar e animar.
E uma tarde no grande foyer do Hotel, onde era comum os frequentadores mais assíduos dessas noites se entrelaçarem socialmente com a restante população burguesa menos dada à assiduidade noctívaga, encontrei a Sara.
Era uma jovem um pouco mais velha, namorada do Picas, meu colega e amigo do liceu, que decidira ir ao Brasil tentar aceder a uma determinada universidade.
Ela tinha uma imagem mais adulta que a maioria de nós, naquele seu corpo torneado e miudinho e nas feições muito atraentes, enquadradas pelo cabelo negro de azeviche e a pele branca em que sobressaíam uns olhos com o dom de prometer mistérios e apelar particularmente às minhas fantasias eróticas.
Era aliás uma atracção antiga e nunca esclarecida que se tornara obsoleta e ultrapassada no momento em que a soube namorada oficial do Picas.
Mas naquele quadro de dois comprometidos insolventes pareceu-me inocente procurar na sua companhia o convívio sereno e paliativo para as ausências mútuas.
A mente humana, sobretudo nessa fase já adulta mas ainda pouco madura, prega-nos destas partidas e foi de facto atrás deste justificativo que decidi preferir o seu convívio nos dias seguintes à constatação desta coincidente ausência de parceiros.
Assim foi com naturalidade que a comecei a acompanhar até à casa próxima, num passeio que alongávamos pelo miradouro e a ficar sentado à sua porta, numa conversa que nunca ganhou empolgamentos ou empatia assinaláveis mas que me sabia bem porque encurtava o dia, já que me determinara a não enveredar pelo corrupio noctívago, que sabia ao que levaria.
E num dos princípios de noite seguintes, que nos encontrou ainda no mesmo degrau, surgiu inesperadamente uma daquelas cargas de água tropicais que deixam tudo e todos ensopados num minuto, pelo que pareceu natural entrar para me secar.
Como não nos secámos apenas nos dias seguintes o encontro iniciado sempre no foyer do hotel ao final de tarde foi sendo progressivamente abreviado e prolongado depois em casa dela, até por ter também os pais – que nunca conheci - para a Metrópole.
Nesse período nunca houve qualquer referência aos ausentes, tornados tabu por omissão, por isso quando algum tempo depois entrei ao final da tarde no hotel e vi o Picas sentado ao seu lado não sabia se o seu regresso fora inesperado ou consoante o previsto.

Especado debaixo do enorme vão da entrada fui assolado por um conjunto de emoções contraditórias e desconfortáveis.
Os motivos dessa desorientação eram vários e nada abonatórios mas o que mais me surpreendia era ser o recém chegado a surgir na minha mente como o amigo ali presente.
Reconhecia assim de chofre e num momento de surpresa e mal estar que aquele tempo partilhado com ela, muito para além do que tinha inicialmente previsto e hipocritamente negado desejar, não me abrira afinal uma frente de interesse, paixão, ternura ou mesmo amizade colorida particularmente fortes por ela.
E percebi pela primeira vez que por vezes são as nossas carências, solidões e egocentrismos que gerem e determinam as escolhas pontuais e oportunas que decidimos.
Procurando nelas só respostas e emoções provisórias e de substituição que não resultam afinal de uma força interior e atracção reais, alimentadas pelo interesse, pela paixão e menos ainda por esse conceito complexo em que acolhemos os autênticos anseios, intuitos, sentimentos e desejos e a que chamamos genericamente amor por alguém.
A escolha foi imediata e aproximei-me dele para o abraço que recuperara já a certeza da alegria que manifestava.
Evitei sempre uma conversa a dois com a Sara depois deste episódio, ela também não fez disso uma questão inultrapassável e por isso a partir daí carreguei provavelmente sozinho o mal estar que senti perante a Concha ou quando calhava ver um deles.

Mas julgo que foi nele que adquiri este desconforto perante situações ambíguas e equívocas, evitando participar nelas, no que nem sempre fui bem sucedido, reconheço.
Mas não por premeditação da minha parte.
Porque sempre que percebi estar afinal envolvido me afastei radicalmente de cena.

O que não obstou a alguns momentos de grande desencanto, mágoa e sofrimento.

Hotal Polana

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