sexta-feira, 4 de março de 2011

A Primeira Dama e eu


Uma vez em Sidney dei comigo de repente ao lado de um galã do cinema, daqueles mesmo famosos que vivem em Hollywood, o Mel Gibson, que entrava para a estreia de um filme seu na Austrália.
Assim fiquei a saber também que tinha já na altura uma carequita de franciscano, escondida pelas filmagens e que por isso nunca aparecia ainda nos ecrãs, mas isso não interessa nada.
Isto a propósito daquelas vaidades pessoais que resultam apenas e exactamente de conhecermos alguém verdadeiramente famoso.
Coisas afinal sem importância nenhuma que, como quase tudo o que guardamos ao longo da vida, nos ocupam esse recanto do ego.
E, já agora, aqui vai outra.


A Primeira Dama e eu

Ainda adolescente e em Moçambique, onde vivi essa parte deliciosa da minha existência, mas já sem pais que tinham regressado à metrópole portuguesa após o 25 de Abril, conheci aquela que será provavelmente a única mulher no universo conhecido que chegou a primeira dama em dois países, a Graça Simbini, então namorada do Samora Machel e que é actualmente mulher do Nelson Mandela.

Eram divertidos aqueles tempos.

Fiquei lá porque namorava a Ana, porque também tinha uma cadeira atrasada para poder entrar na faculdade de arquitectura de Lisboa, onde muito sinceramente não me imaginava a viver definitivamente. E talvez esse fosse o único e determinante porquê daquela minha indecisão de partir.
E para sobreviver decidi dar aulas de Geografia e História, matérias que teria também de estudar previamente, pois do seu programa já não constava nem Infante Dom Henrique nem a Serra da Estrela.
Colocaram-me na Escola Secundária da Malhangalene, vendo-me inesperada e temerariamente nomeado seu director seis meses depois, por uma daquelas circunstâncias muito peculiares das revoluções.
Era na altura e naquela instituição, por inerência de ter decidido manter as duas nacionalidades, o docente moçambicano com mais atributos académicos para o cargo.

E assim, embora um pouco menos bronzeado do que o previsto, quando a primeira Ministra da Educação decidiu visitar a escola lá estava para recebê-la, ao lado da chefe política do grupo dinamizador local, que era uma mulher de origem meio asiática, a que vulgar mas incorrectamente chamávamos caneca, também jovem mas mais velha e sobretudo dominada por um ideário político acéfalo que me causava pele de galinha.
Em época de fervor revolucionário e implantação da independência recentemente conquistada impunha-se aos alunos uma formação por turmas no enorme pátio interior da escola, antes do início das aulas, quer no horário da manhã quer no da tarde.
Tudo aquilo me irritava de sobremaneira, não só por me lembrar um pouco a Mocidade Portuguesa mas principalmente porque me apercebera já que, embora progressista, não prescindia do meu lado intrinsecamente liberal e desalinhado, que naturalmente se insurgia contra todos os excessos de disciplina ou unicidades decretadas.
E assim os períodos lectivos iniciavam-se com os alunos formados a entoarem hinos aos heróis da revolução moçambicana, que eram elementarmente os Camaradas Presidente Samora e a Graça Simbini, já reconhecida por todos como a futura Primeira Dama do nova nação emergente, já que estava iminente o casamento entre ambos.

Ora na mesma época Moçambique fora também atingida por uma onda de adesões à seita religiosa das Testemunhas de Jeová, que singrava principalmente entre a população mais arredia à mudança política.
E para desgraça dos alunos oriundos dessas famílias a seita proibia-os de cantarem os hinos dirigidos aos heróis revolucionários.
Perante este quadro inibidor a intratável camarada chefe exercia então o seu punhado de poder local da forma mais desumana e cruel possível; durante os hinos andava pelo meio das formações a observar quem não cantava realmente - havia uns que eu mesmo detectava apenas mexerem os lábios, assim como os jogadores de futebol brasileiros nas selecções de outros países - e, no final, quando os restantes alunos se encaminhavam para as salas, mandava-os permanecerem no pátio.
Depois ouvíamos ao longo da manhã ou da tarde a sua voz exaltada gritar a cada um deles a exigência de uma interpretação a solo dos hinos, a que naturalmente a maioria se recusava.
Várias vezes fui ter com ela após esta humilhação dos alunos e que me deixava incomodado, mas encontrava-a invariavelmente corada de irritação e surda aos meus apelos e pedidos para que desvalorizasse a situação, pois os miúdos mais não eram que vítimas das orientações que os pais ou a sua fé lhes transmitiam.

E quando soube da visita da Camarada Ministra ao estabelecimento a mulher entrou em êxtase revolucionário e inquisitivo.
Confidenciou-me então, exultante, que iria pedir à Ministra para enviar para um dos já então muito temidos campos de reeducação da Frelimo todos os jovens prevaricadores a que a sua insistente perseguição e humilhação pública não conseguira dobrar a vontade e a obediência às instruções paternas ou convicções religiosas.
Percebi finalmente que falava a sério quando me mostrou na véspera da visita a lista de nomes que tinha muito criteriosa e empenhadamente reunido deles.
Quando a visita finalmente se concretizou e após o cerimonial de recepção, preenchido por hinos e vivas entoados pelos miúdos, a Camarada Graça reuniu-se com ela e comigo no meu gabinete.
E foi sem espanto já que a ouvi abordar o assunto e explicitar o seu cruel pedido.

Contra o que tinha tentado impor-me não fui capaz de me conter e dei então também a minha interpretação dos factos, argumentando não só que se ia castigar a inocência e a obediência de simples adolescentes apenas mal orientados por pais ou pastores, como eventualmente interromper-lhes uma formação tão importante para um país que reconhecia não ter quadros e, sobretudo, isolá-los em lugares onde coabitariam com outras reais e muito mais nocivas marginalidades, tornando-os provável e definitivamente irrecuperáveis para o processo revolucionário que tanto carecia deles.
A Ministra ouviu-nos silenciosa e serenamente, acabando por desviar a sessão para outros aspectos, sem deixar nenhuma indicação perceptível de como tinha recebido as duas versões e opiniões tão contrastantes e opostas do Caso das Pequenas Testemunhas de Jeová.
E abandonou finalmente a escola sem uma palavra sobre o assunto, o que não deixou de me preocupar pois reconhecia que a orientação vigente era por demais coincidente com a perspectiva da minha colega.
Aliás a partir de então as minhas relações com a chefe da dinamização política evoluíram para uma ignorância quase total, sendo contudo óbvio que ela aguardava a todo o momento o meu afastamento, quiçá para um dos seus muito recomendados e meritórios campos de reeducação.
Mas não.
Cerca de um mês depois recebi uma convocatória para me apresentar no Ministério da Educação e quem me recebeu informou-me que estava mandatado pela Camarada Graça Machel - pois tinha-se entretanto casado com o Presidente - para me informar que ia ser transferido para o próprio ministério, ficando a trabalhar sob as ordens directas da Camarada Ministra.

Pois, mas aí eu lembrei-me do meu liberalismo dominante, da minha língua solta, da minha irreverência nata e fui à novíssima Embaixada de Portugal usar a minha outra nacionalidade – que ficou assim a partir de então - para pedir uma viagem de urgência até Lisboa.
Se fiz bem ou mal não sei mas que me mantive de boa saúde até agora isso sei, mesmo perdendo a oportunidade de aumentar este registo de uma dessas vaidades pessoais que, vendo bem, não têm qualquer importância para mais ninguém.

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