segunda-feira, 25 de abril de 2011

O cartão de cliente

Pequeno conto sobre uma realidade que não constituirá ainda um mito urbano, como o das casas postas que continuarão a proliferar enquanto houver quem se gratifique com relacionamentos adquiridos pelo poder económico ou com a aceitação silenciosa da dependência a esse mesmo factor.
Mas que me parece cada vez mais plausível de emergir do anonimato imposto pelas grandes urbes, pelas absurdas mobilidades e horários laborais, que conjunta e simultaneamente facilitam uma certa propensão à bigamia mental e duplicidade social.

Picasso

O cartão de cliente

Tinham-se encontrado e conhecido na perfumaria, porque aparentemente ambas tinham detestado o presente.
E por um daqueles desígnios do destino que teimamos em definir como incompreensíveis coincidências - ou anónimas manifestações da vontade divina - a Inês estava com o ombro colado à Marta quando entregou o talão de oferta e a empregada decidiu soletrar interrogativamente o nome do cliente surgido no monitor.
Em uníssono ambas o confirmaram, olhando-se em seguida com surpresa e estranha curiosidade…

Subi no elevador com a porteira brasileira, falámos da chuva e do frio que pareciam ter abrandado mas que afinal regressavam em força neste princípio de Janeiro e abri a porta do apartamento já ansioso por me trocar e atirar para o sofá a ler qualquer coisa.
Tinha sido um daqueles dias esgotantes em que os assuntos acumulados na pausa entre Natal e Fim do Ano decidem atirar-se todos e de uma só vez para cima de mim.
Enquanto me dirigia ao quarto para substituir o habitual e formal traje de trabalho por umas calças largas e um casacão de lã velhos e confortáveis ouvi vozes na cozinha e perguntei-me quem teria a Marta trazido para casa.
Vivíamos assim informalmente há já dez anos e como não fizéramos questão de acrescentar filhos à nossa pacata existência nunca casáramos.
Pelo menos era essa a explicação oficial, embora soubesse que não contemplava a minha secreta conveniência em manter assim informal esse estado de vida comum.
Que tinha essencialmente a ver com nunca me ter sentido confortável com a necessidade de tomar opções perante as encruzilhadas da vida.
Embora a justificasse numa recusa muito minha em magoar fosse quem fosse sei que a verdadeira razão é outra e muito mais egocentrista, porque o que realmente me custa sempre é prescindir dos conteúdos que cada escolha implica.
E assim fui protelando sempre essas decisões difíceis, acabando por desistir mesmo de todas as que pude contornar, adaptando a vida à conciliação de realidades aparentemente incompatíveis para muitos outros
O que não evitou que as encarasse inicialmente com grande desgaste e ansiedade, até aos poucos encontrar um peculiar equilíbrio, necessário para lidar com elas, sistematizando e simplificando processos e procedimentos até as ajustar e integrar num modo de viver talvez reprovável à luz de certa decência moral instituída mas para mim depois perfeitamente rotineiro e tranquilo.
Se já antes me habituara a viver consciente de ter esta inapetência e recusa natas para as escolhas ela tornou-se determinante da minha existência a partir do momento em que me enamorei perdidamente pela Marta.
Porque sendo então casado com a Inês esse facto obrigava-me a uma atitude que nunca me senti capaz de assumir por envolver uma escolha que não soube ou quis resolver.
Naturalmente que a paixão anterior pela Inês se transformou num afecto diferente mas nunca consegui verdadeiramente encarar a hipotética separação dela, porque senti e sinto ainda por ela um afecto e uma cumplicidade amiga que sabia intuitivamente não poder aspirar atingir com a Marta.
Porque a Inês fora aquela paixão da liberdade e da descoberta com que ambos mergulhámos na idade adulta, ainda na fase da Faculdade, desses tempos loucos em que o dinheiro e o dormir não constavam ainda das indispensabilidades para se viver com qualidade e intensidade.
Faculdade que concluímos já casados porque ela engravidou no último ano do seu curso de medicina.
E foi já no final do internado geral dela, quando estava colocada em Mourão e levou o Miguel que ainda amamentava, que conheci e me apaixonei pela Marta.
O surgimento dessa paixão não estava previsto nem foi premeditado, menos ainda procurado, apenas sucedeu de forma espontânea e até contra a minha vontade, sem que conseguisse contudo resistir-lhe.
Quando após o internato a Inês regressou definitivamente a Lisboa para iniciar a especialidade em cardiologia eu vivia há já alguns meses com a Marta e foi então que verdadeiramente percebi que tamanha confusão existencial me exigia uma decisão.
Decisão que todavia nunca se transformou numa prioridade nem se impôs com a clareza indispensável para pelo menos definir qual delas preferia para parceira de vida.
Porque se a Inês tinha a seu favor a cumplicidade construída e partilha do Miguel por sua vez a Marta representava a minha mais perfeita compatibilização com uma mulher, algo que nunca me atrevera sequer a desejar, em termos intelectuais, físicos e também “químicos”, ou seja, uma coincidência e complementaridade de gostos e preferências, tanto sobre valores existenciais, políticos, literários, musicais como na excelência da mútua gratificação sexual.
Esses primeiros tempos de coabitação alternada com ambas na capital foram um autêntico pesadelo, obrigando-me a uma elasticidade e desgaste emocionais e mentais que serviram para inversa e contraditoriamente me treinar no exercício dessa vivência dualista, criando para a sua sobrevivência e sobreposição elaboradas premeditações e programações preventivas com que progressivamente ia adiando a necessidade de optar por uma delas.
Não sei mesmo concretizar muito bem em que altura se me adoçou a convicção que afinal essa escolha não era necessária.
Foi uma ideia que se instalou em mim de forma mais ou menos inconsciente mas nem por isso menos pró-activa e determinada, que me levou a adoptar práticas existenciais duplicadas e uma sua sistematização capazes que me permitirem retomar uma vivência sem sobressaltos e agitações.
A primeira foi decidir qual delas integrar na chamada família alargada, que incluía um pai, irmãos, tios e sobrinhos e qual a que desse convívio seria excluída. Calhou este último papel à Sara, para quem fui sempre filho único e já órfão, porque em última análise havia o Miguel a privilegiar o lado da Inês.
Uma outra alteração no sentido da minha estabilidade psicológica foi ter comunicado a ambas que como engenheiro ligado a uma empresa de construção de estradas e auto estradas tinha acumulado nela funções de chefia de projecto e de acompanhamento e fiscalização das obras espalhadas pelo país.
E que nesse desempenho sobreposto teria que alternar cada semana passada em Lisboa a acompanhar o desenvolvimento dos projectos com outra a fiscalizá-los no terreno.
Foi uma solução providencial e prática que, embora não me salvaguardasse de um eventual encontro deu uma enorme folga à minha até aí agitada agenda de presenças alternadas pelas duas casas, distribuídas a partir de então de forma sistematizada, justificada e pacífica.
Além da probabilidade de ocorrência de um encontro desse tipo se me ter afigurado sempre quase nula já que a Inês era médica em Santa Maria e morava em Telheiras, ali bem perto do hospital, processando-se toda a sua vida quotidiana de forma muito cómoda e centrada em redor do Campo Grande, até por o Miguel frequentar lá o Colégio Moderno.
Situação quase oposta à da Marta, com quem partilhava um T3 em Nova Oeiras e que mudava frequentemente de destino laboral, já que o seu CAP a transformara numa freelancer de sucesso no emergente sector da formação profissional.
Este quadro levantou-me alguns outros desafios, sobretudo de logística, porque saia habitualmente de uma das casas com um trolley anunciando a ela só regressar uma semana depois, que era o período previsto para cada uma das minhas viagens de fiscalização às estradas espalhadas pelo país.
Ora como na prática não saia da cidade tornava-se-me complicado justificar no regresso mudanças radicais na roupa levada, para mais sendo esses destinos na província.
Ao princípio ainda argumentei que nessas semanas me era fácil ocupar as noites solitárias cirandando pelos centros comerciais regionais que começavam a proliferar mas era uma justificação forçada e arriscada porque ambas me conheciam a intolerância quase visceral em permanecer demoradamente nesses locais de consumismo.
E resolvi-o finalmente passando a ter tudo em duplicado. Nunca mais comprei uma única peça de vestuário ou calçado isolada, depositando simétrica e sistematicamente duplicados de tudo o que adquiria nas duas residências.
Assim a minha vida passou a decorrer sem sobressaltos também nesse campo e mesmo o rigor com que inicialmente tentava refazer uma semana depois o conteúdo da malinha com que partira de uma delas deixou de ser relevante pois havendo o mútuo conhecimento do meu vestuário e calçado nenhuma delas estranhava que as peças levadas não correspondessem rigorosamente ás trazidas, até porque me tornei adepto conservador de tipos, marcas e modelos muito específicos, quer para roupas e sapatos de trabalho, quer para ténis ou trajes informais e desportivos de fim de semana, cuja compra aliás repetia de tempos a tempos.
Aproveitei ainda o facto de ambas serem Capricórnio, com aniversários separados por uma precisa semana de diferença, para uniformizar também o que adquiria para elas.
Passei por isso a oferecer-lhes presentes rigorosamente idênticos, beneficiando até dessa coincidente proximidade dos aniversários. Num ano foram relógios, no seguinte brincos e assim por diante.
Ainda não decorreram quinze dias desde que comprei o Allure agora lançado para os seus aniversários quase consecutivos.
Foi uma ideia que me pareceu prática, segura e inteligente, pois assim não haverá fragância a soltar-se de mim que se lhes afigure suspeita e desconhecida, contando naturalmente com a personalidade da minha própria pele para justificar qualquer eventual estranheza no novo Allure…
Lembrei-me porque hoje de manhã a Marta me pediu o cartão de cliente da perfumaria, o que provavelmente significa que no meu já próximo dia de anos também irei ter um frasquinho de cheiros…
Antes de sair do quarto para ir saciar a minha curiosidade sobre a voz inesperada que continuava a ouvir olhei-me ao espelho e reflecti que até aquelas calças e casaco que acabara de vestir, tornados confortáveis pelo muito uso doméstico, tal como o duplicado exacto da outra casa, tinham envelhecido paralelamente ao longo de muitas semanas alternadas.

Entrei na sala e sofri um abalo. Sentadas num súbito silêncio e obviamente à minha espera estavam a Marta e a Inês.

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