sexta-feira, 29 de abril de 2011

Nada mau



Tenho amigos que uniformizam e catalogam tudo em positivo ou negativo e nada de meios termos. Para eles até os dias pertencem de forma inequívoca a um destes dois qualificativos sumários.
Pela minha parte vou procurando fazer com eles telas mais ricas e coloridas, mesmo dos pequenos nadas que neles se intrometem, sem a mesma obsessão pela adjectivação absoluta...
 
Nada mau.

Depois da despedida rápida desci de elevador e só no passeio ainda distante me apercebi que deixara as chaves em cima da mesa de reuniões.
Voltei mas ninguém me abriu a porta, todos teriam já partido apressadamente para o fim de semana alongado pelos 4 dias que juntavam a Páscoa e o 25 de Abril.
Passava já das 20 horas, voltei a descer até á entrada do prédio mas inusitadamente o segurança desaparecera e assim subi de novo para insistir na porta do escritório, que continuou  contudo inerte e indiferente ao meu desespero.
Liguei depois e ainda do átrio do piso a avisar que já não iria nessa noite nem provavelmente nos dias seguintes para Évora, como tinha combinado.
E pensei desolado na forma de me distrair durante aqueles dias sem carro, pois era evidente que o escritório em que fora à reunião só retomaria a actividade na terça feira seguinte.
Deixava escapar uma imprecação precisamente quando as portas do elevador se voltaram a abrir. Dentro dele viajava uma mulher que me olhou e sorriu divertida com a minha expressão que, além de acabrunhada por ter sido apanhado no desabafo, devia corresponder com exactidão ao estado de espírito que o originara.
Há dias assim - comentou ela quando entrei e olhando para o painel percebi que também descia.
Nem imagina quanto isso é verdade, particularmente hoje - respondi-lhe notando-lhe logo o olhar directo e desempoeirado, pouco habitual numa mulher fechada com um estranho no elevador, e achando o facto invulgar e até atraente.
Também ela o era, mulher de expressão viva, curvas bem delineadas e torneadas, até ligeiramente exuberantes para a estilização standard em voga, e de aparência global construida entre o prático, o cuidado e o moderno.
E o seu sorriso abria-se numa face de traços interessantes e intensos, onde sobressaiam olhos grandes e de um castanho invulgar, claro mas uniforme e sem a habitual mescla esverdeada.
E para que não nos restassem dúvidas sobre o que aquele dia nos reservara o elevador estremeceu e parou subitamente, ainda com o mostrador a indicar o piso 1.
Não posso acreditar! - exclamámos quase em uníssono perfeito, após o que decidi meter o dedo no botão lateral para forçar a abertura das duas meias portas automáticas do elevador.
Quando o consegui revelou-se à nossa frente uma bela e íntegra parede, sem qualquer nesga ou troço de abertura para qualquer dos pisos que nos separavam de uma ansiada liberdade.
Toquei no botão do alarme mas pouco depois tornou-se óbvio que ele só nos traria salvação provável dentro de cinco dias, abrindo-nos uma perspectiva de fim de semana prolongado que acabava de bater em apoteose todos os anteriores prognósticos, já de si bastante negros.
A minha companheira de infortúnio parecia contudo muito menos afectada que eu com o que se perspectivava ali e depois de dar conta das minhas más expectativas perguntei-lhe porque parecia tão conformada e até tranquila.
- Porque hoje já não espero que rigorosamente nada me corra normalmente, respondeu-me ela sem hesitar, como se fosse fruto de um juízo já formado e consolidado anteriormente.
E continuou :
- Logo de manhã tive que ir três vezes reacender o esquentador em pleno banho e com o gel no corpo porque o dito Sr. Inteligente decidiu avariar-se. Acabei o banho com água fria e quando cheguei ao carro verifiquei que me tinham partido o vidro da janela e roubado o portátil, que tinha discretamente guardado na bagageira mas a que muito diligentemente acederam desmontando e danificando o banco traseiro .
Comecei pois este azarado dia cheia de stress mas lá consegui ao fim da manhã e depois de muitas voltas recuperar parte do trabalho que tinha necessariamente de concluir e entregar hoje até ao meio dia porque o tinha parcialmente copiado numa pen.
Como tinha marcada uma ida para Barcelona com saída do avião às 17 horas ainda me esforcei por o terminar a tempo, o que até nem era difícil, mas como tudo me continuou a correr mal tive que a desmarcar, tal como pedir um adiamento até ao final do dia para fazer a entrega combinada.
E apesar de mais uns tantos percalços inesperados e insólitos acabei por enviar tudo há pouco mais de uma hora.
Estava tão exausta que fiquei apaticamente sentada em frente ao monitor esta última hora, à espera do aviso de recepção e leitura e assim me mantive, progressivamente incrédula, até perceber finalmente que tanto esforço e até a desistência do fim de semana fora tinham sido gratuitos e inúteis, tornando-se óbvio que só será aberto na próxima terça feira.
E quando finalmente digeri isso e saí, meti-me no elevador mas ele parou três andares abaixo, onde dei consigo a deixar escapar um “que porra de vida esta!” que, embora desconhecendo-o, não me parece ser frase que diga com grande regularidade.
Por isso entendi quase sem o formalizar que acabara de encontrar alguém a passar por um dia equiparado ao meu em termos de qualidade...
...O que este enguiço do elevador comprovou definitivamente - rematou ela fazendo um careta risonha perante o meu ar contrafeito, que dava contudo já os primeiros passos na recuperação de um sentido de humor conformado com aquilo que lhe ia sendo imposto.
E para o provar, e também que não desisto ao primeiro contratempo, disse-lhe:
Não esteja já tão pessimista, ainda vamos remediar esta coisa, vai ver. Agora vou fazer uma série de telefonemas  a confirmar se ainda algum amigo meu anda pela cidade e pedir-lhe encarecidamente que nos venha resgatar.
Mas não andava já nenhum e por isso liguei para o número da esquadra do meu bairro, que não era aquele, mas de onde atenderam e prestavelmente me deram o do quartel dos bombeiros mais próximo.
Liguei e lá me prometeram socorrer-nos dentro de uma hora.
Que passámos a conversar, um pouco mais desanuviados, a certa altura já sentados no chão do elevador e partilhando peripécias da nossa vida onde a sorte e o azar pareciam ter sido factores determinantes.

Quando hora e meia depois alguém gritou “já cá estamos, vamos agora lá abaixo puxar o elevador para o Rés-do-Chão para os senhores poderem sair”, suspirámos e sorrimos aliviados, pois já nos ocorrera que também os bombeiros pudessem ter decido antecipar o seu fim-de-semana.
Como a conversa de cativeiro tinha entretanto percorrido situações enquadráveis nesse capítulo dos azares, até com alguns desvios que nos revelaram um pouco das ideias e caracteres respectivos, julgo que criáramos também uma mútua simpatia e inesperada cumplicidade naquele bizarro convívio.
Quando finalmente e após uns tantos solavancos a caixa do elevador parou no piso térreo saímos e demos de caras com as desculpas do segurança do edifício, por ter ido jantar precisamente quando ficáramos presos, o que fora a causa da demora na nossa salvação.
Facto este que nos causou novo calafrio, depois dos bombeiros regressarem da casa das máquinas e nos confidenciarem que estavam mesmo prestes a desistir de ali nos socorrer quando finalmente o segurança chegara da sua prolongada refeição.
Agradecemos, despedimo-nos e saímos para a rua.
Aí a Joana, assim se chamava, virou-se para mim e perguntou-me se queria que me levasse a casa ou a algum outro lugar, já que não tinha transporte e ela nada de urgente a requisitá-la.
Sentíamos ambos claramente um imenso alívio por aquela liberdade que a cerra altura parecera muito improvável, e embora tivesse hesitado acabei por convidá-la para jantarmos, acrescentando divertido que não me parecia que devesse argumentar com afazeres ou compromissos inadiáveis...
Riu-se com gosto, aceitou sem embaraços e lá fomos,  tentando agora adivinhar a quantos restaurantes iríamos bater antes de descobrir um que nos franqueasse a entrada.
Foi ao sexto, mas a comida era agradável e a conversa melhor.
E ficámos amigos ou decidimos tentar sê-lo a partir dali.
Nada mau para um dia assim.

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