segunda-feira, 11 de abril de 2011

Um dom irrefutável

Chagall


Um dom irrefutável

Sou quarto e último filho de um casal culturalmente evoluído e economicamente desafogado e vivi a maior parte da minha infância numa África genuinamente incivilizada na condição de benjamim tardio, o que fez de mim uma criança isolada dos irmãos internados em colégios citadinos e afastados.

Mas tive também o privilégio de com alguma assiduidade passar períodos em urbes modernas, como eram Lourenço Marques, Durban ou Lisboa, com acesso às suas mordomias materiais e sociais, e até de ser ocasionalmente deixado aos cuidados dos avós numa Évora que me trouxe ainda o perfume de um ruralismo diferente.
Fui por isso enriquecido pelo contacto directo com muitas realidades contrastantes que de certa forma lançaram sobre mim a necessidade de precocemente me adaptar à constante mudança dos ambientes e também a tornar-me neles auto-suficiente e independente, até na forma como corporizava os meus devaneios juvenis.

E não sei se nascida do cruzamento de leituras do Super Homem com os luppings aréonáuticos proporcionados pelo recente brevet do meu irmão mais velho adquiri muito novo a convicção que conseguia levitar, observar do alto, voar mesmo e assim deslocar-me pelo mundo com essa prerrogativa das alturas, chegando mesmo a roçar e brincar com as nuvens ou a com tal dom poder curar saudades de entes queridos e outros lugares menos remotos que os ínfimos e isolados povoados brancos em que decorreu a primeira parte da minha juventude.
Não, não se trata como pode parecer à primeira impressão de uma mera e vulgar fantasia infantil, ao contrário guardo desse viajar tão improvável como irrefutável memórias autênticas e vivas.
Assim espreitei muitas vezes os meus irmãos nos seus longínquos colégios, a Mafalda que foi a minha primeira paixão e morava na povoação da carbonífera a uma trintena de quilómetros, até os avós da Évora distante ou a tia Jacinta de Lisboa, a minha preferida e de quem periodicamente sentia saudades por me mimar exacerbadamente, além de ostensivamente me considerar e tratar como o seu super dotado privativo.

E esta certeza de ter tido esse dom permanece e teima em não se desvanecer porque recordo com detalhe inusual muitos aspectos que o tornam indesmentível.
Porque adiei algumas partidas ou cheguei mesmo a desistir pouco depois delas quando se me deparavam péssimas condições atmosféricas e de voo, mas muito mais dramática e aflitiva era a turbulência surgir no regresso, porque se tratava obviamente de uma actividade secreta e completamente à revelia do conhecimento dos meus pais.
O que me obrigava a estar impreterivelmente a horas em casa, para os poder manter nessa ignorância essencial.

Ora aí está outra discrepância difícil de enquadrar e desmistificar como mera fantasia encontrada e explicada na agitação criativa dos sonos infantis: eram viagens definitivamente diurnas e é fácil de perceber que as mais longas me obrigavam a seguir a grande altitude, por vezes até em circunstâncias de rarefacção do ar respirável, porque necessitava de seguir uma linha de costa ou percursos mais ou menos reconhecíveis pelas características do relevo, já que como é óbvio não tinha radares nem outros instrumentos da navegação evoluída.
Eram curiosos esses longo cursos que exigiam grande altitude porque viajava então em permanente e curvilíneo sobe e desce, numa alternância contínua de arcos convexos e o côncavos, respirando no ponto mais baixo e fazendo em seguida uma curva tão alongada quanto me permitiam os pulmões.
E se não bastasse tudo o que já disse posso acrescentar que a única coisa em toda a vida que foi capaz de me provocar um indício de enjoo foram situações pontuais de cansaço ou pressa que me obrigaram a apressar e apertar esse ondular entre altitudes.
Aliás também só pode ter sido este repetido treino de contenção de ar que em adolescente me tornou famoso no meio, porque conseguia estar cerca de quatro minutos a boiar nas piscinas de barriga e cara para baixo, apercebendo-me muitas vezes do burburinho que isso ia progressivamente causando lá em cima e com o que pretendia obviamente chamar a atenção a alguma donzela mais distraída....
Chegando mesmo a provocar alguns mergulhos de pessoas vestidas normalmente, para me salvarem do afogamento e que surpreendentemente me viam depois emergir com um sorriso nos olhos simultâneo ao soltar da baforada de ar contido.

Podia estar aqui horas a dar prova da irrefutabilidade deste meu dom, mas o que não posso é demonstrá-lo.

Porque assim que passei a viver definitivamente numa cidade e nela descobri as amizades e o seu convívio desapareceu.

Com muita pena minha!

2 comentários:

  1. Filip mais uma vez foi um prazer ler ,uma das muitas historias e passagens da tua vida

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  2. Olá Filipe, para além de ter apreciado a tua narrativa, trazes-me Chagall!...nem precisaria de ter lido o nome embaixo da figura, reconheceria essa pintura de longe! Marc Chagall, nome artistico, nasceu numa pequena cidade Russa, e faleceu ...em 1985 com a bonita idade de 97 anos!...uma vida longa e rica, em extenso, vasto património artistico!...espalhado especialmente por França, onde viveu, nos Estados Unidos, onde se refugiou fugindo á ocupação nazi durante a guerra, sendo ele de origem Judaica!...enfim, obras espalhadas por esse mundo fora!...uma grandiosa escolha para enfeitar o teu belo texto!...um forte abraço para ti e obrigada!... Teresa Da Silva

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